Lancelotti, ícone de solidariedade num mundo árido

Foto: Wanezza Soares.

“A solidariedade não pode ser pandêmica, tem que ser endêmica, e tem que entrar nas estruturas” (Júlio Lancelotti).

O terrível ano de 2020 aproxima-se do seu apagar de luzes e, com isso, renova-nos a esperança por dias melhores. Que seja alvissareiro o 2021, ainda que, para muitos de nós, represente uma incógnita diante de tantas incapacidades político-econômicas na Terra do Cruzeiro. Que não nos falte o sentimento da fé, junto ao da esperança e, para que haja completude, que exerçamos a caridade.

Caridade, aliás, é a palavra de ordem do nosso personagem, Júlio Renato Lancelotti (1948), pedagogo e presbítero da Igreja Católica e vigário episcopal da Igreja São Miguel Arcanjo, atuando há mais de 25 anos, na “Pastoral do Povo da Rua”, da Arquidiocese de São Paulo. Ainda se dedica a projetos, na capital paulista, como “A Gente na Rua”, que atende os indivíduos que habitam a “Cracolândia”, formado por agentes comunitários de saúde, voluntários e ex-moradores de rua. Um trabalho belíssimo de acolhimento e repartição do pão (material e espiritual), buscando o alcance da dignidade a muitos que não mais a vivenciam. Antes foi um dos responsáveis pela fundamentação da “Pastoral do Menor”, assim como cofundador da “Pastoral da Criança” e um dos consultores na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), assim como contribuiu decisivamente para a fundação de duas Casas Vida, para o amparo de crianças portadoras do vírus HIV. Seu valoroso trabalho encampa os excluídos de nosso tempo: a população em situação de rua, os dependentes químicos e os transexuais, principalmente.

Neste 2020 de tanto sofrimento e perplexidade, Lancelotti acaba de ser agraciado, na categoria individual, com o prêmio USP de Direitos Humanos, cuja premiação (em cerimônia virtual) ocorreu neste 21 de dezembro. O evento, que ocorre todos os anos, foi instituído pela Universidade de São Paulo e já está em sua 17ª edição, para identificar e homenagear aqueles indivíduos ou instituições que, exemplarmente, contribuam para a difusão, disseminação e divulgação dos direitos humanos em nosso país. Em paralelo, o padre também foi agraciado pelo 7º Prêmio de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, uma iniciativa da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo. Vale registrar que, de 16.643 sugestões para o prêmio, Júlio foi citado em 15.598 delas, um recorde.

A luta do pároco não é, tão-somente, em relação à marginalização social. Ela alcança outros vértices do distanciamento entre as pessoas, coabitantes de um mesmo mundo, hostil, que convergem para práticas – cada vez mais evidentes, infelizmente – de racismo, misoginia, homofobia e aporofobia (o ódio aos pobres em tempos sombrios) – cada vez mais violentas e fortes.
Júlio enfrenta, neste momento, a ira de algumas autoridades, desde que se tornaram públicas algumas ameaças a ele direcionadas, em virtude do trabalho pastoral. Em janeiro de 2020, foram registrados os relatos de três jovens em situação de rua, que alguns policiais teriam dito: “a hora do Padre Júlio vai chegar”, tendo o caso ido parar na Corregedoria da PM. Durante a campanha para a prefeitura, um dos candidatos promoveu uma campanha pelas redes sociais para “desmascarar esse padre” e o pároco foi ameaçado verbalmente por um motoqueiro, o que o levou a registrar um boletim de ocorrência.

Dias após, o Papa Francesco ligou para o sacerdote para infundir-lhe coragem e demonstrar-lhe ampla solidariedade, com uma frase pontual: “Façamos sempre como Jesus, estando junto dos mais pobres”, conforme divulgou a Arquidiocese paulistana.

Recuperar a dignidade e buscar o alcance dos (mínimos) direitos fundamentais das pessoas – alimentação, saúde, higiene, moradia, integridade física e psicológica – tem sido a rotina de Lancelotti, lutando contra a banalização da exclusão (social), a amplitude da fome e a validação dos severos abismos sociais. Exorbita, assim, o (mero) conceito de esmola para alcançar a efetiva defesa dos vulneráveis – ainda em condição amplificada de vulnerabilidade em face da pandemia.

Trajado, quase sempre, com um jaleco branco e um avental laranja, as características sandálias pretas e um “kit” de proteção com luvas de látex e uma máscara respiratória (rosa) com filtro embutido, lá vai o nosso “Magrão” dos dias de hoje, repetindo os passos do outro “Magrão” que aniversaria neste dezembro, o que sempre nos disse que andaria entre os necessitados, porquanto “os são não precisassem de médicos”. A célebre passagem do Mestre, por algumas semanas, entre os leprosos excluídos da convivência social, em seu tempo, é revisitada todos os dias quando ele se põe a distribuir o café da manhã no Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, ou quanto está nas ruas de São Paulo.
Para muitos, Júlio desafia a inatividade dos sentimentos, quando toca seus semelhantes e os recepciona com um caloroso abraço. Humaniza a vida ao declarar: “não trabalho com moradores de rua, mas convivo com eles”. E arremata: “Porque trabalhar me parece que eles sejam objetos”.

Ainda sob as luzes do Natal, sendo, este, o meu penúltimo ensaio desde doloroso 2020, que o exemplo do sacerdote, ícone de solidariedade num mundo árido, ecoe em nossos corações e mentes. Salve, Júlio!

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