Marcelo Henrique: Dilemas da Comunicação em Entes Públicos

 

 

No (longo) processo de socialização e formação da cultura (humana), a comunicação é elemento fundamental, tanto no sentido de consolidação das relações transindividuais quanto para o próprio processo de entendimento de cada um dos fenômenos sociais em que estamos (direta ou indiretamente) envolvidos. Vale lembrar de um bordão de um dos maiores comunicadores que o Brasil conheceu que pontuava: “quem não se comunica, se trumbica” (Abelardo Barbosa, o Chacrinha).

Assim, a comunicação das instituições públicas brasileiras, nas últimas décadas, tem sido objeto de transformações importantes. Precipuamente, a partir da égide da Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei Federal n. 12.527/2011), considerada um marco e um importante passo para a consolidação da democracia brasileira, ficou evidente a intenção do legislador em conferir (ainda mais) participação popular e fomentar e fortalecer o exercício de cidadania. Tudo isto desemboca no fortalecimento dos instrumentos de controle da gestão pública e, por extensão, às próprias entidades públicas (Estado).

Este novo paradigma em termos de transparência pública tem como premissa fundamental que o acesso é a regra e a exceção é o sigilo.

No entanto, dentro da “cultura brasileira” de que há leis que “pegam” e outras que “não pegam”, o desafio passa pela instrumentalização da norma e, como reflexo e consequência, a sua utilização por qualquer cidadão, sem os óbices característicos existentes em muitas organizações públicas.

Diante do aparente (ou real) conflito entre a regra de publicidade dos atos públicos – e, por extensão – da chamada comunicação de caráter público (que é um contexto que se assemelha a um leque, de tantas variáveis que possui) e as técnicas de comunicação bem-sucedidas, vigentes sobretudo no setor privado, deve-se avaliar se há (ou não) a colisão de propósitos e objetivos entre a diretriz (constitucional e legal) de prestação de informações à Sociedade, pelos órgãos públicos, e as ações cotidianas realizadas por profissionais da comunicação que atuam em entes públicos, de “filtragem” de informações e de não-exposição dos dirigentes de organizações governamentais.

Lembremos, outrossim, de um pitoresco episódio de nossa recente história republicana, pós-ditadura, denominado de “o escândalo da parabólica”, em que um determinado Ministro de Estado, flagrado em conversação com um repórter, antes de uma entrevista coletiva, declarou: “Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”, fato amplamente divulgado na mídia da época (1994). Evidente que o personagem não era um profissional de imprensa, mas como ocupante de cargo público de primeiro escalão, naquela gestão federal, seja direta seja por meio de assessoria de comunicação levava a conhecimento público somente algumas das informações relativas à pasta (e ao próprio governo), mas o exemplo é pertinente para esta análise.

Considerando o axioma “comunicação pública, lógica privada”, é possível reconhecer diversas situações fáticas que envolveram, ao longo do tempo, profissionais de comunicação de entes estatais, diante da existência factual de conflitos entre o que divulgar, como divulgar e a quem divulgar. Sempre que o conflito se verifica, nestes parâmetros, há reflexos diretos, tanto sobre os profissionais públicos de comunicação quanto dos gestores públicos.

Muitos profissionais de comunicação, ao assumirem cargos ou funções públicas em suas áreas de competência e habilidade, adquirem “hábitos” e comportamentos que são peculiares ao grupo (administração pública), ocorrendo, aí, a notória adaptação de sua(s) personalidade(s), individual(is), pessoal(is) à do grupo. É a nítida “adaptação ao meio”, pontualmente descrita por alguns teóricos deste tema. Outro ponto a salientar é a (maior ou menor) noção de cultura organizacional, que acaba interferindo na própria formação e no desempenho do profissional de comunicação, já que este adquire e expressa os padrões de pensamento, as atitudes e os modelos de conduta que são característicos ou vigentes no ente público.

Neste contexto, o “sentimento” de “proteção” do gestor ou da autoridade pública, em relação a fatos que estejam sendo “investigados” por repórteres ou editores acaba sendo preponderante. A preservação da imagem do administrador público, então, diante de fatos que estão sendo objeto da investigação jornalística – e que resultarão em matérias publicadas em órgãos de imprensa – poderão “comprometer” ou dificultar a trajetória do político ou servidor público.

Eis, aí, então, um verdadeiro conflito ético. Com a socialização, a personalidade é composta de uma infinidade de facetas e variáveis, sobretudo em face da própria interação permanente com o ambiente e com os demais atores institucionais e sociais. É justamente neste cenário que se dá a dualidade entre a cultura ideal e a cultura real, calcada, para este exercício ou atividade, no paralelismo entre o que se deseja, idealmente, a partir do comando legal obrigatório e a forma de materialização ou disponibilização, efetiva, em termos de atos administrativos.

Então, as técnicas de comunicação consideradas bem-sucedidas, geralmente egressas do setor privado devem ser avaliadas no sentido de serem (ou não) implementadas nos entes públicos, considerando se elas são capazes de gerar resultados favoráveis nos entes públicos e aferindo, sempre, se todas elas são (ou não) compatíveis com os regramentos e a disciplina vigentes na esfera pública. Afinal, nas esferas governamentais, o legal é o agir exatamente em conformidade com os comandos da lei, enquanto que na iniciativa privada ou nas relações particulares, não-públicas, basta não fazer aquilo que a lei proíba.

Por isso, a atuação primordial do profissional público de comunicação precisa ser a de simbolizar uma ponte entre o governo (administração) e a sociedade, que será também intermediada pelos profissionais da imprensa privada, na divulgação dos atos administrativos, das ações governamentais e dos programas de governo. É inadmissível, nos tempos atuais, e sob a égide da LAI, que a conduta do referido profissional, na forma de divulgações e manifestações de assessores de imprensa e congêneres, seja no sentido de “blindagem” do político, gestor ou servidor público.

Assim sendo, as administrações públicas, entes despersonalizados ideal e originariamente, posto que também permanentes, acabam assumindo um “formato” decorrente da personalidade de seus gestores públicos e de outros atores, em nível de assessoria, como os profissionais de imprensa ocupantes de cargos e funções na máquina estatal. E, neste contexto, a posição de conflito entre as regras de publicidade e transparência das ações governamentais e os métodos de ação correlacionados a técnicas de comunicação do setor privado (sobretudo as bem-sucedidas) requer a análise de cada uma das ocorrências, para, nos casos concretos, buscar delimitar (e legitimar) até onde podem ir os “interesses privados” sem desrespeito aos princípios fundantes da administração pública brasileira.

Convenhamos que, na prática, hoje, isto não é fácil. Nem para a exata delimitação, nem para a sua exigência da parte de gestores e demais autoridades públicas. Quiçá o seja, no futuro!

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