Marcelo Henrique: Deus nos livre!

Marcelo Henrique

Deus nos livre de um país evangélico, católico ou espírita.

Religião é Religião. Política é Política.

Na atual conjuntura político-social brasileira, já há algumas décadas, há expressões que, francamente, destoam do ideal complexo de articulação entre poderes governamentais e sociedade. Quando tivemos a confirmação do resultado da última eleição presidencial, ainda na fase de pré-governo, uma expoente daquele grupo político se apressou em dizer que a partir daquele instante seria o “momento da Igreja governar”.

É de senso comum a existência de “bancadas” políticas no Congresso Nacional do Brasil (Câmara e Senado), intitulando-se como “bancada evangélica” ou “bancada católica”, bastante comuns, inclusive, na mídia. Por outro lado, avaliando os que se elegeram no último pleito nacional, também encontramos sete candidatos que se autodeclaram espíritas e, portanto, não me surpreende se, hoje ou amanhã, também tenhamos uma “bancada espírita”.

Ainda que seja lícito que pessoas busquem a representação política contando com o apoio daqueles que professam a mesma fé, religião ou ideologia, e que não haja neutralidade, nem absoluta, nem relativa, entendemos que as pessoas, no desempenho de papeis sócio-políticos, não anulem suas convicções pessoais e, quando coletivamente, busquem apoio e ressonância, sobretudo no Poder Legislativo, para a aprovação de projetos que guardem alguma simetria com tais convicções.

Mas a expressão que dá título a este nosso artigo de estreia – quase um apelo espiritual – está voltada à perigosa e indesejável “mistura” entre os valores das Religiões e os do Estado. O passado não muito distante, tanto no Brasil quanto em outras nações, algumas, inclusive, até os dias presentes, em que Igreja e Política andavam de braços dados, sobretudo nos regimes monárquicos onde figuras exponenciais das igrejas católica e protestante tinham papel consultivo e, até, funções políticas em determinados países, é fato de triste lembrança!

As religiões sempre são parciais e, muitas delas, por natureza, excludentes e impositivas. Elas constroem uma moral autônoma, peculiar, presente em suas liturgias e exercida a partir do comando de suas lideranças, representando, assim, um conjunto de regras internas, aplicável aos seus adeptos e representantes, importando, inclusive, na imposição de “castigos” (como, por exemplo, o voto de silêncio imposto há algumas décadas ao então Frei Leonardo Boff, afastamento de cargos e destituição de títulos honoríficos ou cargos dentro das hierarquias religiosas). No âmbito interno, das organizações eclesiásticas ou similares, a ordem institucional é hierárquica e, portanto, atitudes de impor silêncios e afastamentos constituem, em face da subserviência e concordância de quem a elas se afilia, fóruns com pouco espaço  de manifestação e independência ou liberdade de pensamento.

Quando afirmo “Deus nos livre”, quero dizer que temo verdadeiramente pela restrição das liberdades e pela imposição na base da “fé”. Os fundamentos do Estado Democrático de Direito, com a instituição, a partir da Constituição Cidadã (1988), do Estado Laico, com balizas constitucionais relacionadas tanto à liberdade de crença, quanto à garantia ao direito de expressão, derivado do direito ao livre pensamento, não podem sofrer, nem no âmbito institucional-político, dos poderes e suas lideranças nas Casas Legislativas, nacionais, estaduais ou municipais, nem no contexto da Sociedade brasileira, qualquer risco ou ameaça.

Imaginemos o que seria uma composição legislativa em que tivéssemos uma ampla maioria vinculada a uma forma de expressão religiosa, na definição de normas legais e impositivos de toda a ordem para a sociedade brasileira…

Para que isto não ocorra, nem hoje, nem amanhã, é essencial que, politicamente, todos nós, operadores jurídicos, servidores públicos, pensadores, professores, lideranças de movimentos sociais e, também, os cidadãos em geral, diante de declarações ou condutas de agentes políticos (Executivo ou Legislativo, em especial, mas, igualmente, do Judiciário, já que teremos, logo adiante, a substituição de um magistrado da Suprema Corte Brasileira e já houve manifestação daquele que indicará alguém para o cargo de que a escolha será permeada por “valores religiosos”), devemos estar atentos e preparados para a propositura de ações e remédios jurídicos CONTRA qualquer tentativa de minimização dos direitos constitucionais e sociais.

Todo homem de bem, todo cidadão consciente, todo indivíduo preocupado com o progresso social deve primar pelo afastamento político-administrativo de condutas religiosistas, do “espírito de sistema” e da massificação dos raciocínios e convicções em nome da ideologia de uma religião.

Se cidadãos melhores possuem uma ética e possa ela estar embasada em valores que também derivam da religião que se professe, lembremos que, por imperiosa conformação constitucional do Estado Brasileiro, há duas premissas inafastáveis: 1) a total liberdade para a manifestação do pensamento individual e coletivo (artigo 5º, IV) e, 2) a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, com a proteção ao livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e as suas liturgias (artigo 5º, VI).

Todos queremos ver uma sociedade melhor, transformada, progressista, pela ação individual e coletiva neste sentido. Contudo, não será, nunca, oportuna a conformação majoritária de determinada “adjetivação” (espírita, católica, evangélica ou qualquer outra), porquanto baseada em convenções litúrgicas e modos de interpretação parciais e excludentes, que impõem a todos uma mesma conduta, vinculada aos cânones religiosos e combate e pune aqueles que não forem, a eles, submissos.

Do contrário, que cada um expresse sua religião e sua religiosidade sem necessidade de qualquer conformação a um modelo ou padrão, porquanto vinculado à organização político-administrativa do Estado. Com liberdade.

Deus nos livre!

2 respostas

  1. Infelizmente toda vez que as religiões conquanto instituições estiveram unidas ao Estado, vimos inúmeras barbaridades praticadas pela dita fé. Pelo afastamento dos verdadeiros ideais das ditas religiões constituídas, o número daqueles que se intitulam ateus ou não necessitam de templos para viver suas convicções se expande exponencialmente. Muitos ditos religiosos se assemelham a figura do sepulcro caiado, se utilizam da cultura do medo, da culpa, da salvação para manipular os insensatos.

  2. Ótima abordagem! Que nós, pessoas cidadãs, nos livremos dos extremistas e fundamentalistas- isso se faz pelo voto, não reconduzindo os que se mostram abaixo do ideal laico, republicano e democrático.

.