Marcas da tortura na alma

Enquanto o Brasil debate a lei da Anistia, Thomáz Beltrão fala das sequelas da ditadura militar na vida de Gastone Beltrão, que desapareceu na época do regime

Thomáz Beltrão- secretário Municipal de Educação
Texto: Ana Claudia Laurindo- Cientista Social

Alagoas não é chão dificil de brotar sementes generosas, é fértil e bem servida.

Ao longo da história da nação a profusão de bons frutos tem irrompido as madrugadas sem luz, tem buscado o alvorecer, a vida.

Apesar das sombras que se projetam sobre os campos, apesar do sangue ainda derramado sobre as pedras e musgos, houve e há trabalho e luta pela liberdade e dignidade humana.

Quando disserem que aqui só há vencidos, discordemos disso, os lutadores, os sonhadores, os resistentes permanecem na história.

Entre os muitos dignos de reverência, trazemos a força de resistência da militante da Ação Libertadora Nacional, Gastone Lúcia Cavalho Beltrão, natural de Coruripe, litoral sul alagoano, e os contrapontos do confronto com um poder violento, astuto, assentado na trama nacional oculta nos porões da ditadura militar brasileira.

De codinome Rosa Lúcia, Gastone atuou com outros tantos brasileiros em defesa da pátria livre, que ainda lutamos dia-a-dia para concretizar.
Pagando com a vida pelo crime de sonhar com um país melhor, mais equânime, eles ganharam brilho e sobrepuseram a orientação da luta política na direção da coletividade.

Em colóquio informal com o então Secretário Municipal de Educação de Maceió, Thomaz Beltrão, irmão mais novo de Gastone, pude conhecê-la através do olhar de quem amava a pessoa, sem representações ou símbolos.

As memórias da adolescência de um irmão e as marcas do sofrimento irreparável que a truculência gerou e ainda continua fazendo, para muitos brasileiros, unificam um tanto quanto, as famílias de vítimas.

” Quando essa história se deu eu estava no período da adolescência, com 12 anos, não tinha noção da luta política, lutas sociais e organizações, estava desabrochando para a vida, jogando futebol e xadrez.”

“Era o mais novo, perguntava em casa mas as pessoas continuavam escondendo. O primeiro contato amargo se deu numa ida ao cinema, quando vi uma foto da Gastone, procurada viva ou morta, entre outros rostos.”

A morte de Gastone Beltrão conta com duas possibilidades de ocorrência. Uma versão diz que em 1972, em São Paulo, foi levada pela ditadura, torturada e morta. Todos os que conhecem melhor os artifícios de crueldade utilizados no Brasil nesse período tendem a acreditar que essa é a verdadeira versão.

“No período em que ela era procurada já havia sido assassinada. Alguns assassinatos ocorridos naquela época eram mascarados por simulações de enfrentamento, ou seja, as pessoas eram detidas, torturadas até a morte, e depois se criava o fato para a morte em supostos confrontos armados com autoridades. Os jornais davam manchetes do tipo: pistoleira é assassinada em confronto com a polícia.”

“Nesse contexto a polícia tinha legitimidade para alvejar e oficializar a morte.”

A versão encontradas nos documentos oficiais, como Relatórios do Ministério da Aeronáutica e da Marinha, diz que Gastone Lúcia Carvalho Beltrão foi morta em tiroteio com agentes de segurança. Tendo atingido três policiais.

Thomáz afirma que as fotos revelavam que sua irmã tinha recebido o chamado tiro de misericórdia, em lugar específico do crânio e lesões que indicam a tortura até a morte na obscuridade dos porões.

“O parecer dos técnicos diz que ela foi presa com vida, torturada até morrer. Por isso foi incluída na anistia e a família indenizada.”

Recorda que a experiência mais dificil foi da mãe, Dona Zoraide, hoje com 94 anos, já misturando cenas do passado com as do presente, quando afirma que sua filha (Gastone) está estudando na Paraíba, quando na realidade é uma de suas netas quem vive essa realidade.

“Anistia e indenizações não surtem efeito de compensação. O que se quer é a vida e isso não tem como recuperar.”

Pergunto se os laivos marcantes de humanidade que sobressaem em sua pessoa nasceram da influência dessa história.

“Vem do misto da dor e da formação. Formação ideológica, participação nas organizações sociais. A dor deixa um vetor no sentido de humanizar, pela lembrança da pessoa.”

“Ela era generosa, eu prendia passarinhos e ela pagava para soltá-los, não agredia a criança nem deixava que prendesse. Fiz um passeio com ela ao zoológico do Rio de Janeiro, lá eu queria guloseimas e ela gastou todo o dinheiro comigo, lembro por causa disso o ônibus que conseguimos pegar nos levou até o Largo do Machado, e caminhamos pelas Laranjeiras a pé.”

“A imagem que tenho é dessa pessoa generosa.”

Quantas pessoas boas, abertas aos sonhos mais coletivos, às causas mais nobres o Brasil tem sacrificado?

Os porões da ditaduras relutam em serem abertos profundamente.

Mas a morte, esta, cotinua barrando o caminho dos desenvoltos brasileiros que ousam acreditar mais na vida do que no poder, principalmente no poder da força bruta envernizado de legalidade.

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