Linchamento de Moïse Kabagambe: retrato de um país racista e xenófobo

ARIADNE NATAL

Doutora em Sociologia pela USP, Pesquisadora de Pós-Doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF) e Pesquisadora Associada do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP)

No último sábado, 5 de fevereiro, centenas de pessoas se reuniram em protestos organizados em diversas cidades do Brasil para lutar por justiça para Moïse Kabagambe. O rapaz, um refugiado congolês de 24 anos que vivia no Brasil há quase uma década, foi linchado na noite de 24 de janeiro na praia da Alvorada, no Rio de Janeiro.

A família de Moïse imigrou fugindo da violência de conflitos étnicos em seu país de origem em busca de acolhimento e proteção no Brasil. Ao invés de segurança, depararam-se com a face mais cruel e brutal da realidade brasileira. O jovem foi atacado, imobilizado, amarrado e agredido por socos, pontapés e pauladas por cerca de 15 minutos, sem chances de defesa. Agonizou sozinho e permaneceu sem socorro até perder os sinais vitais.

Seu delito foi ter a audácia de cobrar remuneração por diárias trabalhadas como garçom em um quiosque localizado em frente ao mar, em um bairro de classe média alta carioca. O linchamento ocorreu em seu local de trabalho, sob o olhar de indiferença de clientes e transeuntes. Entre os algozes estavam seus próprios colegas que, movidos por um acesso de fúria, despejaram sobre Moïse uma violência atroz.

De maneira breve podemos definir linchamentos como ações de violência coletiva que contam com participação ativa de um grupo efêmero e sem organização prévia, agindo geralmente em local público, com o objetivo de punir uma ou mais pessoas em caráter de exemplaridade. São episódios de brutal violência física e simbólica, carregados de grande carga emocional e que trazem à tona, da maneira mais tenebrosa, controvérsias a respeito de direitos, justiça, ordem e, principalmente, concepções de cidadania de uma sociedade.

Os dados mostram que as vítimas de linchamento não são aleatórias. Os alvos preferenciais refletem um repertório social a respeito de quem são os extermináveis. É impossível dissociar o linchamento de Moïse de sua posição de imigrante africano, negro, pobre e jovem. Tais marcadores o colocam na posição mais baixa da pirâmide social brasileira e, portanto, em condição de grande vulnerabilidade com sistemática negação de direitos, não só pelo Estado, mas pela própria teia de relações que o cercavam.

Não raras vezes, os linchamentos emergem em momentos de profundas mudanças sociais, de ampliação da cidadania e da incorporação de grupos antes excluídos à posição de sujeitos de direitos. Estas são ações que negam as garantias mais elementares como integridade física e direito à vida ao atingir o corpo da vítima para humilhar, infligir dor, fazer sofrer e, por fim, eliminar. São episódios carregados de simbolismo que ocorrem em locais públicos justamente porque pretendem deformar, marcar a inferioridade e despojar o corpo de qualquer humanidade ou respeito à integridade, negando seu direito à cidadania.

A banalidade da violência e o desprezo à vida se apresentam claramente neste caso, no qual os agressores argumentam que queriam apenas “extravasar a raiva” e que estão “com a consciência tranquila”. Para eles a violência que praticaram é considerada uma ação justificada e a responsabilidade das agressões é da própria vítima. Moïse teria sido insolente o suficiente para cobrar como se tivesse direitos, teve a ousadia de importunar e de exigir como se fosse gente e em contrapartida foi tratado como se fosse um inseto indesejável. A violência se inscreve como uma resposta, uma forma de colocar Moïse (e por conseguinte os seus) em seu devido lugar, restaurando a hierarquia e restabelecendo uma ordem que é acima de tudo racista, xenófoba e classista.

O fio de esperança diante do dantesco e de tudo o que ele representa foi a forte reação da sociedade civil. Após o caso permanecer ignorado pelo grande público por cinco dias, uma pequena manifestação da comunidade congolesa provocou um congestionamento capaz de chamar a atenção da imprensa que, por sua vez, noticiou o linchamento. Ao longo dos dias seguintes, diante da cobrança de organizações e de formadores de opinião, o caso ganhou visibilidade e gerou mobilizações, o que fez as investigações avançarem. Resta acompanhar os desdobramentos e consequências. Depois de tanta dor e violações, o mínimo que o Brasil deve a Moïse, à sua família e à sua comunidade é solidariedade, respeito e direito à justiça.

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