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Libertação da/na Psicologia em Alagoas

Pescador na Lagoa Mundaú em Maceió-AL

Começo este texto com intenções humildes, mas que, no entanto, não são fáceis de se contrapor a realidade da profissão do psicólogo em Alagoas. Estar atento aos movimentos da profissão é um passo decisivo na compreensão do que estamos “sendo” para evitar, assim, a narrativa eminentemente falsa de que esgotou todas as possibilidades da Psicologia. Deste modo, o esforço que agora chamo o leitor é o do diálogo, na tentativa de impulsiona-lo para além do que está “sendo”, mirando o que pode “vir a ser”.

Isto é, existe uma sistematização, uma forma de fazer Psicologia que hoje é dominante em Alagoas. Trataremos então de sua dominância e da maneira como esta “forma de fazer” acomoda a sociedade a partir de uma espécie de mutismo profissional, ou direcionamento único do profissional psicólogo ao silêncio político, a passividade histórica e a não participação das decisões e ações que comportam anseios de uma sociedade aparentemente silenciosa, mas em constante movimento e luta.

Partimos, então, do pressuposto fundamental de que a Psicologia, enquanto ciência e profissão, é um processo e não está acabada, fechada em si mesma, em suas compreensões de mundo, de homem, de subjetividade, etc. Ora, se ela não está acabada e está em movimento, porque a sociedade está em movimento, o homem está em movimento e o “processo” de desenvolvimento da Psicologia é necessariamente dialógico, contraditório e complexo, haveremos de perceber o grande problema que se objetiva na Psicologia dominante no Estado.

Ou seja, não é criada para o movimento da sociedade, para o desenvolvimento do homem no sentido de suas possibilidades históricas, para estabelecer relações entre decisões políticas e sociais na produção da vida dos sujeitos e as práticas profissionais em Psicologia. É, sobretudo, uma criação sistemática de conformação, opressão silenciosa do psicólogo como sujeito histórico e como profissional em movimento, em construção. Destarte, serão expostos alguns aspectos que coadunam com essa hipótese:

  •  Falta de espaços de construção coletiva

A tendência marcante das instituições de representação profissional no Estado é o silêncio, deixando de ter a característica de agregar, acolher, sobretudo nas dificuldades dos profissionais no desenvolvimento de suas possibilidades. Quando se isentam, por exemplo, de defender a categoria ou de alimentar o sentimento de pertença, de participação, de discussão da realidade e atribuem isso uma responsabilidade individual dos sujeitos, demonstra o viés individualizante, psicologizante, apolítico e ahistórico dessas instituições e seu descompromisso não apenas com os psicólogos mas com o povo alagoano. Uma Psicologia que mais segrega do que une.

Se não promovemos estudos sobre a profissão desde a realidade local e não entendemos aspectos de quem são os psicólogos alagoanos em suas expressões sociodemográficas, distribuição geográfica e questões trabalhistas temos um amorfismo, ou uma universalização genérica de pesquisas que se desenvolvem nas regiões Sul e Sudeste.

Desta maneira, o “sujeito psicólogo” não aparece na realidade histórica do Estado. Não há trabalhos que organizem nossas próprias características, conquistas e desafios. Sobra-nos teorizar sobre como podem, como devem, como poderia ser o trabalho do psicólogo em Alagoas a partir da abstração e do idealismo, ou caímos no psicologismo, que trazem a mesma características citadas anteriormente e que de longe apreendem nossas questões concretas.

Institui-se, a partir deste dispositivo de controle social (a instituição de representação profissional), as bases para uma Psicologia em uma única tendência e que beneficia poucos, em suas estruturas, e salientam alguns nomes e pessoas no cenário da profissão. A profissão, então, passa a ter a cara dos “gestores” da categoria de modo que todas as possibilidades devem passar pelo “crivo” pessoal, enviesado e politicamente carregado do “presidente” e das pessoas que o acompanha.

Obviamente, não podemos responsabilizar individualmente esses profissionais, mas entende-los na lógica da totalidade da estrutura social que os envolvem enquanto seres sociais. Isto é, promovem, conscientes ou não, o afastamento sistemático da categoria de suas potencialidades políticas, da tomada de consciência da própria realidade, impedem o crescimento da democratização dos espaços da profissão, da conscientização a partir do diálogo, acabando na consolidação da hegemonia de uma Psicologia para os interesses das classes dominantes e da opressão elitista em Alagoas sobre a própria categoria e sobre as classes populares.

  • Falta de diálogo com a realidade local

Considerando o enfoque na qualidade dos sistemas e estruturas que compõem o desenvolvimento profissional  do psicólogo em Alagoas, a falta de diálogo e a forma de “transmissão” do conhecimento de cima para baixo cria, invariavelmente, uma fratura na relação psicólogo-realidade local. Os arcabouços teóricos oriundos de outras regiões do país, sobretudo do eixo Sul-Sudeste, compõe o repertório teórico e prático do psicólogo alagoano como se fossem universais e de características marcadamente absolutas, sem questionamentos. Os fenômenos são delineados a partir de fora da nossa realidade histórica e política e a “comunidade” ou o “individuo” sempre “receptor” e “receptora” das técnicas psicológicas se adequam a esses modelos teóricos e a essas concepções de mundo num infeliz anacronismo de estudos que não alteram qualitativamente as questões que se propõe transformar.

De um lado, cobra-se um “compromisso social” e uma vontade de “transformar situações sociais opressoras” mas não se discute as características macroestruturais, geográficas, históricas, econômicas da sociedade que os sujeitos estão inseridos. É o excesso de tecnicismo, sem conscientização, sem esforço de diálogo com a realidade local, sem conhecer a partir de quem nós devemos trabalhar que impossibilita a construção de alternativas ou um “quefazer” mais apropriado.

Da mesma maneira, o diálogo com os movimento populares, o estudo dos conflitos sociais, de território e organização popular na luta de melhores condições de vida, por moradia e saúde acabam por não ter espaços nos ambientes de representação profissional. No máximo conseguem discutir questões de gênero, sexualidade e relações étnico-raciais mas fora do conteúdo macroestrutural do capitalismo dependente sem considerar as lutas de classes na compreensão do fenômeno.

O psicólogo, então, seria um facilitador do processo de “empoderamento”, de reconhecimento individual das potencialidades dos indivíduos na sociedade capitalista. Não mais interessa ao psicólogo a crítica ao modelo de exploração imposto pelas classes dominantes na produção de situações concretas de opressão sobre as classes populares que tem gênero, orientação sexual e raça.

Cabe, sobretudo, a crítica a esta concepção de diálogo proposto pela categoria sobre estas questões e a quem realmente interessam esses debates. O que fazem os profissionais com estes temas? Quais as modificações capazes de alcançar com o povo em seus momentos de luta? Precisamos de respostas.

O exercício ético-político do profissional não acontece em momentos específicos do ano em campanhas nacionais pela saúde mental e contra o suicídio. O compromisso social não é apenas discutir temas “críticos” e “do momento” mas almejar uma outra sociedade possível, uma outra Psicologia possível e que não negligencie o “povo” (maiorias populares) em detrimento de alguns (minoria rica, classe média e urbana).

  • Falta de interesse no popular

O desenvolvimento da Psicologia no Estado esteve longe do povo desde a abertura do primeiro curso de Psicologia em Alagoas, nos anos 1970, numa universidade privada. Os tempos mudaram, mas a tendência geral da história de Alagoas é a conservação de aspectos fundamentais da organização antiquada da ordem social ao que comumente se chama de “modernização”. Apesar da “modernização” acontecer, mesmo que de maneira tardia, na estrutura produtiva de Alagoas com o enfoque na agroindústria sucroalcooleira, a direção desta tendência histórica não foi a modernização das relações sociais e de trabalho.

A sociabilidade alagoana possui a marca pretérita da grande propriedade, das grandes famílias e oligarquias agrárias de outrora e que permanecem, com ares de modernidade e de generosidade paternalista, no imaginário popular  e na construção ideológica da dominação social.

Logo, a partir deste componente objetivo na configuração da propriedade e dos interesses burgueses, a Psicologia se desenvolve, encontra suas bases. Hoje, com a afã neoliberal iniciado no Brasil na década de 1990, a ênfase no modelo privado de educação oferece uma maneira bancária de formação profissional, ou ainda, individualista e “carreirista”.

A distância do popular é o caminho encontrado pela formação bancária para mascarar a realidade, ideologizar as relações que se estabelecem pela aparência, pela busca pelo “sucesso profissional”, a venda ostensiva de um “futuro” que encontra-se, na maioria das vezes, frustrado pela própria configuração econômica do Estado.

Se Alagoas tem os seus conflitos sociais, onde estão seus estudos e suas histórias? Onde implica a presença da Psicologia nestes conflitos sociais? Onde se localizam estes conflitos? Como estuda-los? Quais os fundamentos teóricos e metodológicos para apreende-los e dar uma resposta efetiva?

O que existe, infelizmente, é uma tendência a negligenciar o sujeito alagoano lhe “assujeitando”, tornando-o dócio pois a realidade é dada numa eternidade, as coisas são e nunca podem deixar de ser. A Psicologia não se preocupa com este sujeito quando o considera “não-psicológico” e por isso, não passível de atenção científica, não passível de observação sistemática já que não diz respeito a “Psicologia dominante”.

Não há povo no Estado ou escolhemos ignorá-lo? A pobreza, a miséria, a violência urbana, a violência no campo, as lutas por terra e moradia não existem em Alagoas ou não nos interessamos pelos sujeitos populares alagoanos?

Haveremos de nos perguntar e de fazer ecoar estas perguntas, na esperança não apenas de respostas mecânicas e rápidas, mas compreensão do processo, na explicação de seus motivos, na elucidação desta tendência como tendência histórica e de compromisso político com os “de cima”.

Há outros horizontes a serem explorados e outros caminhos possíveis, precisamos de um Psicologia da Esperança, que aproxime os psicólogos povo a partir do otimismo crítico e no sujeito transformador que emerge na conscientização.

Saiba mais:

Freire, P. (2005) Educação como prática da liberdade (28 ed). Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Martin-Baró, I. (1996) O papel do Psicólogo. Estudos de Psicologia, 2(1), 7-27. Acesso em 22 de outubro de 2020, recuperado de https://www.scielo.br/pdf/epsic/v2n1/a02v2n1

Martin-Baró, I. (2006) Hacia una psicologia de la liberacion. Revista Eletrônica de Intervención Psicosocial Y Psicología Comunitaria, 1(2), p. 7-14.

SOBRE O AUTOR

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