Letramento Literário antirracista na sala de aula: a descolonização da imaginação

Maria Alice dos Santos é professora

Sociedade justa é aquela que tem a literatura como direito inalienável, afirma Antônio Cândido. E em uma sociedade formada por diversas etnias, raças e culturas, onde mais de 54% são compostos por pessoas negras, ela jamais pode ser apenas “universal”, europeia e branca, a dominar o espaço da sala de aula, na maioria das vezes a única apresentada ao educando na escola. Logo, “a consciência branca é a matriz de onde se observa a totalidade do mundo, se estuda, se ordena, se classifica e se avalia” (SARTRE, 1968, p.89).

Ao efetivarmos essa prática, silenciamos sujeitos e violentamos subjetividades, contribuindo para a coisificação do negro, construindo representatividades que contribuem para o epistemícidio de nossos educandos, o que constitui uma das forças motrizes do Racismo Estrutural, moldando o direito à fabulação ao modus operandi de uma sociedade racista que ao longo da história aperfeiçoa suas tecnologias e torna o Racismo, em muitas situações, invisíveis aos nossos olhos.

Nos últimos meses, as pesquisas mostraram que nunca se venderam tantos livros sobre o Racismo (isto é animador!), um reflexo das ações antirracistas de intelectuais e movimentos negros, que lutam dia-a-dia para desconstruir “o mito da democracia racial”, instituído como forma de neutralizar mentes e corpos à não percepção das inúmeras injustiças sociais e atrocidades psicológicas sofridas pela pessoa de pele negra. Contudo, isso não é suficiente.

Para romper o sistema de injustiças ao qual é submetido o negro neste país – que, muitas vezes, em consequência das inúmeras violências sofridas, odeia a si mesmo, suas características genéticas, sua história, sua estética, o seu “eu” –, faz-se urgente a descolonização do currículo, que busque romper com a simbologia Ocidental que tem o branco como forma de “perfeição” e a “cor negra como ignorância, a morte, o mal, o domínio do demônio.”(Cortazzo, 2004, p.2)

Dessa forma, a literatura pautada, apenas, nos clássicos literários, nos Cânones, reforça essa construção dos estereótipos sociais, em que apenas os brancos são heróis e de bom caráter, enquanto o negro é sempre feio, malandro, preguiçoso. E a mulher negra, escrava; ou, quando muito, uma forte aliada à misoginia do homem branco.

Todavia, Domício Proença Filho (2004) diz que “Assegurar essa limitação imposta em altos brados, afiance a sua condição humana, contribui assim para atribuir à burguesia a culpa moral da escravidão”. Sabemos que isto, de fato, não é suficiente. É fundamental ampliarmos o espaço de sala de aula à reflexão, ao contraditório e à imaginação, possibilitando ao educando vislumbrar outros “mundos”.

Outrossim, a inserção da literatura afro-brasileira na escola dá a oportunidade multiplicar as possibilidades de nos “libertar do caos que nos desumaniza”, e proporcionar uma oportunidade, talvez a única, diante do sistema político no qual vivemos, a rica possibilidade nos libertar dos monstros que abrigamos e que fomentam as injustiças sociais sofridas por descendentes de pessoas escravizadas.

Igualmente, ao não trazer autores negros para “o chão da escola”, estamos fortalecendo o sistema de opressão, o qual, ao longo da história, realiza vários boicotes intelectuais que perpetuam a visão racista que impõe uma identidade de autonegação, impedindo que o negro não se reconheça, nem seja reconhecido, enquanto sujeito produtor e receptor de cultura, tampouco que o branco se reconheça como dominador.

Deste modo, para romper com esse estereótipo e contribuir para que outras subjetividades sejam construídas, é fundamental promover o reconhecimento de autores negros, oportunizar a ampliação da fruição deste bem humanizador, libertando-se da fruição restrita à literatura da elite, proporcionando um letramento literário em que a leitura literária seja de fato espaço de liberdade, um Direito Humano.

Segundo Rildo Cosson (2014, p.23), “o letramento literário é uma prática social, e, como tal, responsabilidade da escola”. Ao promover o letramento literário antirracista, estamos abrindo a porta da escola para que a diversidade em suas múltiplas manifestações venha habitar um espaço que deve ser o maior promotor da leitura, agenciador de práticas de liberdade que nos conduzam à transgressão do sistema opressor em que vivemos.

Para isso, é urgente que repensemos nosso papel enquanto cidadãos e, principalmente, enquanto professores, e a nossa prática de mediação de leitura, que insiste em disciplinar a leitura do texto literário, matando o prazer da leitura. Pois, para construirmos uma relação prazerosa, é preciso liberdade e atendimento e ampliação da expectativa, pois a fruição do texto literário deve ser constituída de evasão e desafio.

Entretanto, ao não se verem representados nas estórias, nos personagens, no espaço que não proporcione a descoberta de si, do corpo, das sensações, dos impulsos e associações, onde ocorre a alegoria do processo de leitura entre o mundo e o eu, “nenhum sujeito efetivamente pode saber e saborear o ser e o estar-no-mundo” (Heidegger, 1983).

Destarte, é fundamental que promovamos a inserção da literatura Afro-Brasileira na sala de aula para tornar nossa mediação leitora prazerosa e humanizadora, reconhecendo diferenças e desigualdades, rompendo o horizonte de expectativas pautado na supremacia branca, ampliando o horizonte de expectativas do educando e alargando-lhe a realidade empírica. Dessa forma, construímos para possibilitar a reinvenção e recriação do humano.

Caro professor, talvez só agora, diante da atual conjuntura e das mobilizações antirracistas em todo o mundo, estejamos descobrindo como “é triste ignorar certas coisas”, como nos diz Drummond no poema Mundo Grande. Por isso, promover letramento antirracista é condição sine qua non para “esperançar” no sentido de lutar contra aquilo que apodrece nossa episteme, como nos ensina o grande educador Paulo Freire. Para isso, é necessário um letramento literário antirracista na perspectiva da construção de imaginário decolonial para que passemos a vislumbrar um de um novo mundo na perspectiva da reconstrução de uma nova realidade mais humanizadora para negros e brancos.

Referências

SATRE, Jean Paul. Reflexões sobre o Racismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.

CORTAZZO, Uruguay. Branquitude e Crítica Literária. Literafro.www.letras.ufmg.br/literafro. Biblioteca de Negras de Pelotas.2004.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo. 2 edição, 3 reimpressão: Contexto, 2014.

HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

PROENCA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em 10 jul.

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