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Laudo mostra que temperatura na Kiss chegou a 110ºC

Zero Hora

Conforme Zero Hora e Diário de Santa Maria adiantam desde fevereiro, uma série de erros e omissões levou ao elevado número de vítimas na tragédia da boate Kiss em 27 de janeiro. Laudos do incêndio, do local, dos extintores e da espuma, já enviados à Polícia Civil, comprovam que aberturas em desacordo com as normas, ausência de sinalização indicativa nas rotas de fuga (com exceção de uma) e obstáculos pelo caminho impediram a saída fácil e segura das vítimas.

Todos os aspectos físicos da casa noturna que contribuíram para levar às mortes e a centenas de feridos foram analisados por peritos do Instituto-Geral de Perícias (IGP). O laudo mais completo é o que trata da estrutura da boate. As 161 páginas trazem avaliações, testes, desenhos, esquemas e fotos sobre a edificação, itens de segurança, início do fogo, saída de emergência e sistema de exaustão.

Uma das conclusões mostra que, do total de 241 mortos, pelo menos 234 morreram em um ambiente com temperatura de até 110ºC, por asfixia por inalação de gases tóxicos (monóxido de carbono e cianeto).

Os gases gerados na combustão da espuma, ativada por meio do artefato pirotécnico, foram jogados de cima para baixo pelo sistema de ar condicionado e de ventilação, criando um ambiente tóxico para as pessoas. Os produtos da combustão ficaram confinados no interior do prédio pela inexistência de um sistema que retirasse os gases aquecidos e pela ineficiência do sistema de exaustão de ar que estava bloqueado junto à fachada. Com a abertura das portas de saída, as fuligens e gases adotaram o mesmo caminho do deslocamento das vítimas durante a evacuação.

Ainda segundo o laudo do incêndio, a maioria das vítimas foi encontrada dentro dos banheiros e nos acessos, locais onde não havia sinalização de saída.

Para concluir os estudos, os peritos do IGP — uma equipe de seis pessoas, entre engenheiros e arquitetos — estiveram em Santa Maria por cinco vezes, a primeira em 27 de janeiro, dia da tragédia. Depois, em 28 e 31 de janeiro e em 1º e 4 de fevereiro.

Veja o que diz o laudo do incêndio do Instituto-Geral de Perícias (IGP):

A estrutura

A fachada era revestida por madeira e placas metálicas. Havia madeira também em parte do piso do térreo, inclusive no palco, e no segundo pavimento

Obstáculos

Havia guarda-corpos de dois tipos: de madeira, separando ambientes, e metálico. Estes últimos estavam afixados ao chão com parafusos em frente às portas intermediárias que ficavam antes da porta de saída, tinham cerca de um metro de altura e dois metros de comprimento, podendo aumentar mais com uma extensão. Além desse, havia outro guarda-corpo no hall antes da porta de saída. Com eles, o vão livre foi reduzido a quase a metade do recomendado pelas normas técnicas.

Exaustão

Os dutos de ar existentes ficavam no teto dos banheiros na parte da frente da boate e estavam obstruídos, parte pelas janelas basculantes (que estavam vedadas) e parte pela parede de alvenaria. Na falta de dutos específicos, a exaustão do ar dentro da casa noturna ocorria principalmente pela porta da boate, quando aberta. Não havia abertura de ventilação nem na cozinha para evitar acúmulo em caso de vazamento de gás. A quantidade de fuligem em diversos pontos mostrou que a produção de gases era maior do que a capacidade de exaustão.

Ar condicionado

O sistema estava ligado para refrigerar o ambiente.

Fogo

Começou com faíscas produzidas por um artefato pirotécnico que, em contato com a espuma (material combustível) que revestia o duto de ar condicionado acima do palco principal, produziram as chamas. O fogo se propagou pelo duto no sentido dos fundos para frente para o lado direito e de cima para baixo. Foi descartada a possibilidade de curto-circuito.

Aquecimento

A temperatura em alguns locais dentro da boate chegou a 110ºC.

Espuma

Era de poliuretano e revestia o duto de de ar condicionado e o teto acima do palco principal, também a parede do fundo do palco e as paredes do caixa que ficava perto da saída. São de fácil combustão e, quando queimadas, liberam gases tóxicos (cianeto, monóxido de carbono e dióxido de carbono).

Artefatos pirotécnicos

Foram encontradas duas embalagens com “velas de aniversário com purpurina – Júpiter”, “Centellador de tubo”, “venda livre – classe A – uso permitido em um dos depósitos”. Foram feitos testes com artefatos comprados em lojas da cidade pela polícia (cujas embalagens trazem instruções de uso, como verificar se o ambiente é aberto ou ao ar livre e manter-se a uma distância de 10 metros de pessoas e produtos inflamáveis, entre outras. As chamas produzidas atingiram altura suficiente para alcançar o teto.

Extintores

Eram em número suficiente — era preciso três no térreo e um no segundo pavimento. Havia cinco na boate — um que não funcionou junto ao palco, dois em condições de uso e um que não foi possível avaliar pelo estado de destruição — que foram encaminhados à análise. Estavam em distância adequada — menos de 15 metros para serem alcançados. Porém, todos estavam no térreo e não havia nenhum no segundo pavimento. Um sexto extintor que estava no local era do supermercado em frente à casa noturna. Foram apontadas outras irregularidades: placas indicando extintores, sem os equipamentos, e placas em um local e suportes em outro.

Vídeo

28 segundos de imagens gravadas pelo celular de uma vítima que estava na área vip perto do palco mostram fragmentos da espuma em chamas caindo do teto e, em seguida, as chamas se espalhando pela espuma e gerando grande quantidade de fumaça. Mostra ainda que as luzes permaneceram acesas indicando que o fogo começou longe da rede elétrica.

Iluminação

Atendia parcialmente às normas, porque havia 14 luminárias de emergência identificadas, mas não havia iluminação de rotas de fuga no chão para caso de fumaça dentro da boate. Além disso, as normas estabelecem iluminação de obstáculos, como barras metálicas, para facilitar a evacuação, o que não ocorria na boate. As normas ainda estabelecem iluminação pisca-pisca em áreas com possibilidade de incêndio ou fumaça, o que também não ocorria.

Saída de emergência

Não atendia à norma. Deveria ter duas, pelo menos, e tinha apenas uma — a mesma entrada — que ficava a uma distância de quase 32 metros do ponto mais longe que era o palco onde o fogo começou. Para o público a maior distância era de cerca de 30 metros. Mesmo sendo constituída por diferentes portas, a soma dos vãos era mais de um metro menor do que a recomendada pelas normas.

Sinalização de saídas

Deveria apresentar sinalização de saída em todos os acessos. Foram encontrados vestígios de duas placas plásticas, faltando em outros quatro pontos, entre eles os banheiros da frente do prédio para onde as vítimas desorientadas foram.

Lotação

Era para 769 pessoas no total — 740 na região de acesso ao público e 29 na região da cozinha e apoio. A área total era de 640,32 m², sendo que desta 369,98m² de área destinada para o público, incluindo banheiros e 205,99m² de área de apoio. O cálculo considera duas pessoas por metro quadrado de área pública e uma pessoa a cada sete metros em áreas de cozinha e apoio.

Evacuação

Considerando o tamanho da saída, a evacuação seria de 400 pessoas por minuto, porém, isso não acontecia na Kiss, porque a população não estava de acordo com a área, a sinalização não era efetiva e as rotas de fuga não estavam plenamente desobstruídas.

Classificação de risco

Com acréscimo de risco considerando as rotas convergentes para a mesma saída, a distância a ser percorrida até a saída, o risco à vida decorrente do fogo e da fumaça, a classificação é de grande risco porque porque se trata de uma edificação em que a propagação do fogo é fácil devido à presença de madeira nos pisos da estrutura.

Itens de segurança

Por ser prédio sem janelas, deveria obedecer exigências especiais que não eram cumpridas: chuveiros automáticos, sistema automático de saída de fumaça e gases quentes — já que dispunha de acabamentos combustíveis — e duas saídas, afastadas o máximo possível uma da outra.

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