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Gravando minisérie em Alagoas, Ney Latorraca volta ao trabalho após UTI

Ney Latorraca é um sujeito organizado. Do tipo que anota num bloco, em tópicos, tudo o que precisa dizer à repórter na entrevista. Ele também costuma deixar a roupa que vai usar no dia seguinte separada na noite anterior, com sapatos, meias, o celular carregado e o texto cheio de marcações — discriminando as cenas externas das de estúdio.

Diante de tanto planejamento, o ator de 69 anos (“e idade mental de 12”) não poderia imaginar que seria pego de surpresa: em outubro do ano passado, ele se internou para uma cirurgia de vesícula. Devido a uma infecção no peritônio e uma consequente insuficiência respiratória, passou quase cinquenta dias na UTI. A volta pra casa foi no dia 12 de dezembro.

— De repente tem que acontecer algo assim, né? Para mostrar que a vida não é uma cadeirinha com a roupinha pendurada. Às vezes, tem que entrar uma escola de samba, com outro enredo, para agitar. Mas não tive medo de morrer. Tinha certeza de que sairia dali e voltaria a trabalhar — reflete o bem-humorado Ney, que volta à cena um ano depois do incidente, no especial “Alexandre e outros heróis”, programado para o dia 18, depois de “Amor à vida”, na Globo.

No ar atualmente na reprise de “O cravo e a rosa”, no “Vale a pena ver de novo”, Ney conta que preferiu evitar o contato com os amigos durante a internação (“eles fizeram vigília na porta do hospital”, conta).

— A Claudia Raia me ama. Vai que ela entra, faz um número de sapateado e planta bananeira para mim. Depois ela vai embora e como eu fico?

Mesmo assim a passagem pelo hospital foi movimentada. Ney conta que, a pedido de Ana Paula, sua fisioterapeuta, imitou Barbosa (um de seus personagens mais populares, vivido por ele no humorístico “TV Pirata”). Tudo para ganhar pão de queijo e café. Também não esquece o que sentiu ao ver um padre no seu quarto.

— Não sou católico praticamente, mas sou católico. Eu achei que estava indo embora, os aparelhos começaram a apitar. E eu gritei: “Tô partindooo. Adeus”. O homem ficou muito sem graça — diverte-se.

O carinho durante o período difícil não veio só dos amigos. Ney apegou-se tanto à fisioterapeuta, que foi o primeiro a chegar no casamento dela. Ao retomar a rotina das caminhadas diárias na Lagoa — ele mora no bairro — foi surpreendido com a quantidade de promessas que haviam sido feitas em seu nome. Como, por exemplo, a do motorista de Miguel Falabella, que se comprometeu a ir a Aparecida caso ele ficasse bom.

— Na Lagoa sentiram a minha falta. Todo mundo perguntou, uma loucura. Minha casa ficou cheia de flores, e meu celular, lotado de mensagens. E o que precisava acontecer para eu me curar de vez veio, né? — comenta, referindo-se ao convite do diretor Luiz Fernando Carvalho para que protagonizasse o especial, baseado em contos de Graciliano Ramos: — A melhor coisa que existe é ser salvo pela profissão. Não exite remédio mais eficiente que imergir no trabalho, você esquece tudo!

Após ter recusado participar da segunda temporada de “Pé na cova” para se recuperar integralmente, Ney revela que o convite para viver Alexandre saciou um desejo seu, “trabalhar com Luiz Fernando”, a quem considera “genial”. Mas eles poucos se falavam, comenta.

— Luiz nunca me olhava. Até que, um dia, nos esbarramos numa rua deserta. Ele disse que tinha visto um gato branco, e era um sinal de que tinha que trabalhar comigo. E sabia todo o meu currículo — gaba-se.

Passar dez dias no sertão de Alagoas não foi uma questão, garante. Munido de uma necessaire cheia de remédios e artigos de primeira necessidade (“Algodão, cotonete, e até adoçante, acredita? Todo mundo recorria a ela”), Ney revela que sua preocupação era mostrar aos colegas que estava apto para fazer bem o papel.

— Luiz até propôs um ponto eletrônico, mas não quis. Decorei 70 páginas. Depois de seis anestesias gerais, imagina?

Irreconhecível em cena, Ney aparece com barba, bigode e caolho, como descrito no texto de Graciliano. Embora a princípio tenha estranhado a tal lente de contato (“Faço pelo público”), Ney diz que, ao fim das gravações, nem se lembrava mais que a dita-cuja estava ali. E para a barba, que demorava horas para ser colocada, ele encontrou uma solução prática:

— Falei: “Se vocês me derem uma hora a mais de sono, chego pronto amanhã”. Dormi daquele jeito. Deitado, de frente, sem mexer para ela não descolar.

Além de organizado, Ney é prático. E ansioso, ele confessa. Fica tenso antes de gravar e preza pela disciplina no set. Mas, também, depois que termina…

— Só fico bem depois que gravo, me sinto livre. Dizem que quando estou no Projac, o estúdio treme. Sou brincalhão, adoro saber o que está acontecendo.

Mas passar muito tempo nos estúdios da Globo nunca esteve entre suas atividades preferidas. Ney conta que não é de emendar um trabalho no outro.

— Tem gente que gosta de fazer novelas seguidamente, de ficar naquela praça de alimentação. Eu sou tenso. Quero chegar e fazer, e prefiro que o público tenha saudade de mim. Senão fica aquilo “hum, lá vem esse mala de novo” — brinca.

O ator afirma que só aceitou trabalhar com Luiz Fernando por achar que a parceria acrescentaria algo em sua trajetória. Encenar literatura adaptada também é um de seus prazeres.

— O roteiro da adaptação vem pronto, deixo ele todo marcadinho. Sou estudioso — reitera ele, ainda em dúvida sobre a participação em “Meu pedacinho de chão”, próxima trama das 18h, dirigida por Luiz: — Não sei se aguento.

Ney é disciplinado e não gosta de trabalhar com gente antiprofissional. E afirma: essas pessoas nem chegam perto dele.

— Não tem espaço para esse tipo de gente, são descartáveis. Claro que quem saiu do “BBB” pode ser bom. O talento fica. Não podemos ter só os museus — avalia, explicando por que mantém amizades sólidas no meio: — Os talentos se entendem, né?

Preparando-se para os 70 anos em 2014, Ney, muito pobre na infância, diz “viver no lucro”. Depois do susto, valoriza mais os gestos simples como tomar banho e comer sozinho.

— É bom sentar à mesa e comer bife à milanesa, arroz, feijão e salada de agrião. Adoro. Tudo preparado pela Terezinha, que está comigo há 40 anos.

Outro prazer de Ney são as viagens. O ator já conheceu quase o mundo inteiro e, agora, quer explorar mais o Brasil. Na profissão, sonha interpretar um personagem sem falas.

— Que eu consiga passar tudo em silêncio.

Fonte: O Globo

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