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Estupro e gravidez aos 10: sucessão de violências

As dores do nosso Brasil são muitas, afetam diferentes partes das vidas ainda pulsantes, e grande parte delas são antigas, enraizadas no lodaçal da sociedade asséptica, desumana, tendente à manutenção das estruturas de domínio e subjugação.

Estupro é tema sensível, doloroso, marcante, mas ainda assim encoberto por grossas mantas morais geradoras de tabus; e por isto mesmo acaba se tornando um crime daqueles que violentam a vítima por várias vezes e de diferentes formas.

Ao envolver criança, estupro e pedofilia entram em cena juntos, aumentando a ojeriza e a indignação, mas ainda assim continua contando com os apetrechos do moralismo sádico, amortizando impacto sobre o autor e acentuando punições sobre a vítima.

Entender estas questões pede mais do que opinião, pois é preciso perceber as estruturas perversas da sociedade patriarcal e todos os ganhos que estes domínios conferem à supremacia masculina. Por isso mesmo o tema é perseguido com ofensivas pseudo-puritanas, no resvalar da hipocrisia.

O caso da menina capixaba que foi abusada sexualmente pelo tio e engravidou aos dez anos, revolve a sujeira que há muito tem sido jogada para baixo do tapete.

Apesar do risco de morte para a menina-mãe, o pedido judicial para a realização do aborto teve desfecho protelado, permitindo o avanço da gravidez ( o que torna todo procedimento ainda mais arriscado para a vítima).

Apenas depois de um vasto movimento através das redes, denunciando que gravidez aos 10 anos mata, para despertar comoção social, foi que a justiça do Espírito Santo autorizou o procedimento.

Apesar de celebrarem o desfecho da luta, muitos canais de proteção à infância que se manifestaram no caso, demonstraram contenção, afinal se tratava apenas de parte do ganho. E estavam certo estes canais. Pois o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (HUCAM) recusou efetivar o procedimento sob a alegação de não haver protocolo para tal intervenção, declarando o avanço da gravidez como uma das razões.

A menina mais uma vez exposta, foi levada para outro estado brasileiro no intuito de cumprir a determinação judicial, e seu paradeiro está sendo mantido em sigilo.

Agora consideramos: Qualquer leigo no assunto sabe que em casos onde é preciso escolher entre a vida da criança e a vida mãe, a medicina já tem a resposta pela mãe.

Apesar de ser ainda uma menina, a vítima responde pela condição de mãe, como consequência da invasão biológica que o estupro lhe impôs. E será tratada como  uma mãe que pode morrer durante o procedimento “natural” do parto e por causa disso a gravidez precisa ser interrompida.

Emergem os discursos religiosos arcaicos, em conivência com a estrutura opressora e misógina que tem se revelado incapaz de exercitar humanidade para com a vítima.

Estruturas sociais localizadas, como hospitais, muitas vezes corroboram com a ideia corrente pelas vias dos discursos moralizantes que lhes preenchem a subjetividade através de suas equipes médicas.

A religião entra em cena como óbice quando na verdade poderia estender a mão solidária à vítima.

Eis o mundo que conseguimos criar e manter e precisamos mais do que nunca reconfigurar, pois os fatos mostram que estamos equidistantes da civilidade quando sustentamos posturas e discursos que penalizavam a mesma vítima initerruptamente.

O gosto que sentimos na boca é de repúdio, indignação e pesar. Mas insistimos em torcer pela vida da vítima!

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