Repórter Nordeste

Época: Chávez, à sombra de um corpo embalsamado

Uma anedota narrada pelo escritor anglo-americano Christopher Hitchens ajuda a explicar o fenômeno Hugo Chávez. Em 2008, ao lado de um amigo, o ator Sean Penn, Hitchens foi a Caracas visitar o presidente da Venezuela. Durante uma conversa sobre os Estados Unidos, Chávez pôs em dúvida a existência do terrorista Osama bin Laden. Sean Penn objetou: “Mas, presidente, vários vídeos mostram Bin Laden, feitos pelo próprio Bin Laden”. Ao que Chávez respondeu: “Mas você acredita nesses vídeos? Eles são exibidos pela mídia americana. É tudo propaganda”. E emendou: “São como as imagens que mostram o homem na Lua. Lá, você vê a bandeira americana tremulando. Mas existe vento na Lua?”. Todos riram, em dúvida sobre se Chávez falava a sério ou não. Hitchens – colunista de ÉPOCA até sua morte, no fim de 2011 – escreveu na revista americana Vanity Fair, também com uma pitada de ironia, que, em momentos como esse, duvidava da saúde mental de Chávez.

O episódio resume dois dos aspectos essenciais da personalidade do presidente venezuelano. Um deles é o charme, capaz de seduzir artistas e intelectuais de esquerda no mundo inteiro, o ator Sean Penn entre eles. Chávez era um frasista de efeito (leia abaixo), contava histórias engraçadas e sabia adaptar seu registro às diferentes plateias que cortejava. O outro aspecto é a estratégia traçada por Chávez para realizar seu grande objetivo na vida: entrar para a história e erigir-se em mito . Eleito presidente da Venezuela no limiar do século XXI, ele detectou que havia lugar no mundo – especialmente na América Latina – para quem se apresentasse como inimigo número 1 dos Estados Unidos. Durante décadas, Fidel Castro ocupara esse papel. Mas Fidel estava velho, e seu regime em crise, desde que perdera o subsídio da União Soviética. A esquerda latino-americana clamava por um Fidel mais jovem. Chávez – que, como Fidel, já usava uniforme militar – pôs a boina vermelha e, com um discurso sedutor, postou-se diante das câmeras e dos microfones.

Líder carismático, Chávez foi, no entanto, péssimo governante. Quando se analisa friamente seu desempenho como administrador, constata-se seu fracasso em fazer da Venezuela um país melhor. Durante sua gestão, o ambiente econômico se deteriorou, os investidores fugiram, a qualidade da democracia piorou, os índices de violência dispararam, a inflação aumentou, tornou-se a maior da América Latina, e o sistema de saúde naufragou. Sob qualquer parâmetro objetivo, a gestão de Chávez à frente da Venezuela nunca ultrapassaria os índices de “ruim” ou “péssimo”.

É certo que houve exceções nesse fracasso administrativo – nas áreas de educação e redução da pobreza. As estatísticas mostram que o governo Chávez erradicou o analfabetismo em seu país – de acordo com os padrões da Unesco, reduziu-o a uma taxa abaixo de 5%. A percentagem de cidadãos sem renda suficiente para as necessidades básicas caiu, de 49,4% para 29,5%. Tal redução, no entanto, não ficou acima da média da América Latina no mesmo período. Era natural que, na onda de redemocratização que varreu o continente, os governantes eleitos pelo povo – de esquerda ou de direita – encarassem a questão como prioridade. O Peru reduziu a pobreza mais do que a Venezuela no mesmo período, sob a liderança de dois governantes de centro e um de centro-esquerda – o atual presidente, Ollanta Humala. Na Venezuela, mesmo com os programas sociais, a vida da população mais pobre piorou, por causa da deterioração da economia e das instituições democráticas. O jornalista americano Jon Lee Anderson, que visitou várias vezes a Venezuela durante a Presidência de Chávez – e no começo, como Sean Penn, encantou-se com ele –, registrou em tom de lamento, nas páginas da revista americana The New Yorker, a deterioração da qualidade de vida no país.

Chávez em palavras e pensamentos (Foto:  Juann Barreto/AFP)

A última terça-feira marcou a derrota de Chávez em sua luta de dois anos contra um câncer – e também a vitória de sua obsessão em tornar-se mito. Na quarta-feira, milhares de venezuelanos formaram uma maré vermelha para acompanhar seu caixão no cortejo fúnebre. “Chávez vive! A luta segue!”, gritavam. Ao longo de sete horas, o corpo de Chávez percorreu as ruas de Caracas, até chegar à Academia Militar. Diante de uma fila de visitação que chegava a durar 12 horas, o velório presidencial foi prolongado por uma semana, para que mais cidadãos pudessem dar seu adeus. Adeus ou até logo. O presidente interino, Nicolás Maduro, escolhido por Chávez como seu herdeiro político, anunciou, na quinta-feira, que o corpo de Chávez será embalsamado, depois exibido permanentemente no Museu Militar de Caracas.

Como alguém que fez um governo abaixo da média pode, ao morrer, ser tratado como herói nacional? A primeira razão tem algo a ver com a cultura latino-americana. Neste pedaço do planeta, está disseminada a crença de que governantes carismáticos são capazes de mudar a história de um país. Chávez somou a seu carisma uma versão reciclada do velho discurso antiamericano, bravata que ainda faz sucesso na América Latina. Em nações do mundo desenvolvido, sabe-se que são instituições democráticas sólidas, e não líderes com habilidade de frasista, que fazem a diferença. A prosperidade dos Estados Unidos deve muito mais à adoção da Constituição, criada pelos “Founding Fathers” na Filadélfia em 1787, do que à atuação de qualquer dos presidentes democraticamente eleitos desde então.

A segunda razão é a propaganda estatal nos meios de comunicação de massa. A iniciativa midiática mais famosa de Chávez foi o programa de rádioAlô, Presidente, uma espécie de talk show aos domingos, de duração indefinida. Nele, Chávez falava sobre ações do governo, mas também ofendia opositores. Chegava a dar ordens a ministros ao vivo. Sua presença era complementada pelas cadeias obrigatórias de rádio e televisão, um recurso que, com finalidade de propaganda, contraria a Constituição venezuelana – mas que Chávez usou largamente. Entre 1999 e 2012, suas aparições somaram um total de quase 3.500 horas, ou 145 dias, somando as cadeias com o Alô, Presidente. Entre rádios, TVs e jornais, o Sistema Nacional de Meios Públicos da Venezuela reúne mais de 30 veículos. Quando os meios de comunicação não eram estatais, Chávez tinha dificuldade de lidar com eles – traço, aliás, comum a governos autoritários. A perseguição à imprensa independente foi outra característica do seu governo.

As violações à liberdade de expressão na Venezuela saltaram de 168, em 2002, para 248 no ano passado, de acordo com a organização venezuelana Espacio Publico. Esse número inclui intimidações e agressões físicas a jornalistas ou censura pura e simples. O momento mais grave do cerco ao jornalismo profissional ocorreu em 2007, quando o governo não renovou a licença de transmissão da Radio Caracas Televisión (RCTV), então a segunda emissora mais popular do país. A decisão determinou seu fechamento. Chávez também fechou mais de 30 emissoras de rádio.

Em 2010, Chávez recebeu da amiga Cristina Kirchner, presidente da Argentina, um prêmio da Universidade de La Plata por sua “contribuição à liberdade de expressão”. Como ela, Chávez perseguia os que pensavam diferentemente dele. Essa era uma das facetas mais reveladoras de seu desprezo pela democracia. As outras foram o aparelhamento da Justiça, a submissão do Congresso e o desrespeito constante à Constituição.

Num país politicamente dividido, onde a oposição obteve 45% dos votos nas eleições de outubro passado, há dúvidas sobre a longevidade do culto em torno da figura de Chávez. A comoção gerada por sua morte deve, porém, levar à eleição de seu vice, Nicolás Maduro, como novo presidente da Venezuela. Pela Constituição, o novo pleito deverá ocorrer em até 30 dias. Na semana passada, Maduro assumiu como presidente interino, uma decisão controversa, pois a Constituição dava margem a outra interpretação – no caso da vacância da Presidência, quem deveria assumir o lugar de Chávez seria, segundo essa interpretação, o presidente da Câmara, Diosdado Cabello. Ficou no ar a impressão de que Maduro sentou na cadeira do líder apenas porque era o preferido de Chávez. Candidato oficial nas próximas eleições – ele provavelmente enfrentará a oposição do mesmo Henrique Capriles, derrotado no ano passado por Chávez –, Maduro tem muito em comum com o padrinho. Poucas horas antes da morte de Chávez, ele levantara a hipótese de que o câncer tivesse sido causado por ardis do serviço secreto americano. No mesmo dia, expulsou do país um diplomata dos Estados Unidos.

Ao se colocar como inimigo número 1 dos Estados Unidos, Chávez cortejou alguns ditadores que tinham postura semelhante. Aproximou-se do sírio Bashar al-Assad, do líbio Muammar Khadafi e do iraniano Mahmoud Ahmadinejad – este último chegou a ser condecorado com a Ordem do Libertador, a máxima honraria venezuelana. Chávez também usufruiu um efeito recorrente entre os governantes latinos que adotam o discurso antiamericano: põem a culpa por tudo o que dá errado em seus países em razões externas e auferem apenas os benefícios pelo que fizeram de bom. Parte da população que pranteia Chávez atribui as dificuldades da Venezuela atual – entre elas violência e inflação – ao inimigo americano. Os avanços, na área social, creditam na conta de Chávez.

Qual o futuro da Venezuela sem ele? Primeiro, o país terá de aprender a viver à sombra de um mito. De um lado, grande parte da população o idolatra. De outro, os herdeiros de seu regime cultivam a idolatria, com medidas como o embalsamamento – de acordo com Maduro, ato que o equipara a outros ícones da esquerda, como Lênin ou Mao Tsé-tung. Segundo, há de lidar com a herança concreta de Chávez. É um legado que inclui alguma melhoria nas condições sociais, mas que é, principalmente, uma herança de desprezo pela democracia, instituições enfraquecidas e ambiente econômico à beira de um colapso. O melhor cenário para a Venezuela é superar a idolatria por um corpo embalsamado e, seguindo o exemplo de outras nações latino-americanas que hoje prosperam – como Colômbia, Peru, Chile ou México –, reinventar-se como país com economia sólida e cultura democrática. Lidar com o legado de Chávez significa, em grande parte, livrar-se dele.

As informações são da Revista Época

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