Repórter Nordeste

Entre o real e o utópico, no Egito

Renata Tranches- Correio Brazilense

Enquanto sobreviviam em meio a uma militância combatida por governos autoritários, os movimentos islâmicos defendiam arduamente suas utopias. Na posição de forças políticas durante as eleições da Primavera Árabe, as novas lideranças enfrentam o desafio de balancear suas ideologias com os anseios de sociedades ávidas por melhorias socioeconômicas, renegadas por anos de tirania. A maneira como esses governantes conduzirão esse processo, muitas vezes conflitante, é acompanhada com atenção por aqueles que temem o surgimento de regimes fundamentalistas.

Por ser o maior e um dos mais importantes países do Oriente Médio, o Egito atrai desconfianças. O recém-empossado presidente Mohamed Morsy, da Irmandade Muçulmana, já sente a pressão e tenta, ao mesmo tempo, gerenciar uma atordoada agenda doméstica e executar o papel inerente à liderança egípcia nas relações com a Autoridade Palestina e com Israel — ambos cruciais para a estabilidade da região.

Nas duas últimas semanas, Morsy recebeu os três principais líderes das duas facções rivais palestinas. Estiveram no Cairo o presidente da Autoridade Palestina e líder do Fatah, Mahmud Abbas; o chefe do grupo rival, Hamas, Khaled Meshaal, e seu primeiro-ministro, Ismail Haniyeh. Após as eleições palestinas de 2007, o Fatah e o Hamas entraram em desacordo. Atualmente, enquanto o primeiro controla a Cisjordânia, o segundo administra a Faixa de Gaza, que faz fronteira com o Egito. O governo egípcio tem atuado para facilitar a reaproximação das duas facções, em um processo que começou com o ex-presidente Hosni Mubarak.

Desde que a Irmandade Muçulmana abandonou a clandestinidade no Egito — durante a ditadura de Mubarak, ela era proibida de atuar politicamente — e seu Partido Liberdade e Justiça conquistou a Presidência e a maioria no parlamento, começaram a surgir temores e especulações de que o país pudesse rever os acordos de paz assinados há mais de 30 anos com Israel. O grupo islâmico chegou a considerar essa postura em 2011. Na época, o então candidato Morsy propôs um plebiscito sobre o tema.

O Egito foi a primeira nação árabe a reconhecer o Estado de Israel — além dele, apenas a Jordânia o fez. Uma pesquisa do instituto americano Pew Research Center mostrou que a maioria dos egípcios é favorável à revisão dos tratados assinados em Camp David (EUA), em 1979, o que aumentou o clima de hostilidade. Pesa ainda o fato de o Hamas — cuja fundação se inspirou na Irmandade Muçulmana — ser visto como um grupo terrorista pelo Ocidente e se recusar a reconhecer Israel.

Diante desse cenário, as partes envolvidas e os analistas estão otimistas, porém, cautelosos. Na avaliação do embaixador da Autoridade Palestina no Brasil, Ibrahim Al-Zeben, ao receber os líderes no Cairo, Morsy acenou que aponta a questão palestina como central na agenda doméstica egípcia. “Estamos com muitas esperanças de que o governo egípcio seguirá atento à questão da Palestina, que é estratégica”, afirmou. Ele acrescentou, entretanto, a importância de que o Egito levante o cerco contra a Faixa de Gaza e assuma o papel de mediador no processo da reconciliação nacional palestina, dois pontos conflitantes com Israel.

A reaproximação entre o Hamas e o Fatah ainda não está concluída, apesar de um pacto assinado em maio de 2011 no Cairo. A prova de fogo será as eleições presidenciais e legislativas palestinas, previstas para este ano. A aliança, porém, poderá retardar uma possível volta à mesa de negociações entre palestinos e israelenses. O Hamas não reconhece o Estado judeu e rejeita qualquer diálogo com o país, a não ser sobre questões referentes ao cotidiano da população de Gaza.

Cautela

Ao comentar o encontro das lideranças palestinas e egípcia, o embaixador israelense em Brasília, Rafael Eldad, foi cauteloso, mas disse que seu país também demonstrou vontade de retomar os contatos com Cairo e de “trabalhar para a paz”. “Não sei se é uma coisa boa (os encontros com líderes do Hamas). O Hamas fala claramente da destruição de Israel. Mas espero que os líderes do Egito e de Israel se encontrem no futuro próximo”, afirmou.

Na avaliação do embaixador, ainda é muito cedo para conclusões, mas seu país espera manter “boa relação e cooperação” com o Egito, preservando os acordos de paz. “Temos de dar um pouco mais de tempo ao novo presidente para se organizar e fincar suas linhas, suas políticas, que espero que sejam de paz e de boa vizinhança”, ponderou, considerando ainda ver a nação egípcia disposta a ajudar os israelenses e os palestinos a voltarem a conversar.

Por enquanto, o cenário — de acordo com o cientista político Gamal Abdel Gawad Soltan, diretor do Centro Al-Ahram de Estudos Políticos e Estratégicos (Cairo) — não deve se alterar, uma vez que Morsy tentará manter a estabilidade para a condução do novo governo. Para isso, segundo Soltan, a questão da Palestina e as relações com Israel estão diretamente ligadas . “A posição de Morsy é a de manter os acordos de paz com Israel e evitar uma deterioração da violência no Egito. Diria que ele está sendo sincero quanto a isso”, afirma. “A explosão de uma crise no Oriente Médio poderá minar sua capacidade e sua habilidade de prover um governo efetivo.”

Sinais de mudança na sociedade

Apesar de a Irmandade Muçulmana dar garantias, por diversas vezes, de que o governo de Mohamed Morsy não transformaria o país em uma república islâmica, pequenas mudanças já são observadas no Egito. Uma delas chamou a atenção na última semana, quando o país ganhou seu primeiro canal de tevê no qual as mulheres aparecem vestidas com o véu muçulmano completo — o niqab. A emissora leva o nome de uma das mulheres do profeta Maomé, Maria. Segundo a rede, as mulheres que usam o niqab são discriminadas na imprensa e não podem trabalhar em outros canais. Sua criação é um sinal da maior liberdade religiosa desde a queda de Hosni Mubarak. Também na última semana, o novo primeiro-ministro, Hisham Qandil, apareceu usando barba, tornando-se o primeiro na história do país a fazê-lo. A barba já foi vista com um símbolo de piedade religiosa no Egito e, ao ser adota por um político, sugere mais um sinal de transformação na sociedade egípcia.

Sair da versão mobile