Pré-candidato em Maceió, João Lyra vira réu em ação de trabalho escravo

Em vez de colchões, os trabalhadores recebiam espumas envelhecidas, sujas e rasgadas, com espessura entre cinco e dez centímetros, sem condições para higienização e repouso, segundo o relatório do Grupo Móvel, principal peça de acusação. Não eram fornecidas roupas de cama nem travesseiros

Com agências

O deputado federal João Lyra (PSD) passou nesta quinta-feira à condição de réu, no Supremo Tribunal Federal, responsabilizado por permitir a prática de trabalho escravo numa de suas usinas de cana de açúcar — a Laginha Agroindustrial, situada em União dos Palmares, a 75 quilômetros de Maceió. O flagrante foi feito pelo Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, em fevereiro de 2008.

Por 6 votos a 4, o plenário do STF acolheu denúncia do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, e abriu ação penal contra o parlamentar-empresário, enquadrando-o no crime de “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”, constante do artigo 149 do Código Penal, com pena prevista de dois a oito anos de reclusão. Conforme a denúncia, 53 trabalhadores encontravam-se nessa condição.

Prós e contras

O relator da denúncia, ministro Marco Aurélio, entendeu não ter ficado caracterizado pelo MPF o crime tal como tipificado no Código Penal, mas sim constatadas infrações de ordem trabalhista, em procedimento administrativo do Ministério do Trabalho, sobretudo quanto a péssimas condições de higiene e a alimentação precária. A seu ver não se provou ter havido “sujeição dos prestadores de serviço a trabalho forçado, com limitações de locomoção”, nem foram verificadas, conforme os autos, “condições degradantes”.

Ele acentuou que a tipificação do crime, conforme a revisão do Código Penal feita em 2003, deixou de ser “aberta”, e passou a ser “fechada”, nos seguintes termos: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

O relator foi seguido pelos ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Mas este último não recebeu a denúncia, apenas, por considerar que não foram descritos, “minuciosamente”, os fatos delituosos atribuídos ao outro denunciado — Antônio Lyra, filho do deputado, e diretor da Lajinha Agroindustrial.

A ministra Rosa Weber abriu a divergência, na linha de que – para a recepção da denúncia e início da ação penal — bastavam os indícios existentes nos autos de “condições degradantes” de trabalho. Acompanharam o seu entendimento os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Ayres Britto e Cezar Peluso – este ressaltando que estava em causa a “dignidade da pessoa, considerada sua condição de trabalhador”.

No início do julgamento, na sustentação oral, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, afirmara que o inquérito demonstrou, “eloquentemente”, que mais de 50 trabalhadores eram submetidos a condições degradantes de trabalho na fazenda do denunciado, tais como alojamento sem camas e sem qualquer ventilação, além de condições péssimas de higiene, de alimentação e, em alguns casos, jornadas de trabalho contínuas de até 24 horas.

Ayres Britto concluiu o seu voto ressaltando que, para a tipificação do crime, não é preciso haver “escravidão escancarada, com grilhões”, mas sim condições “análogas, semelhantes”, às de escravidão.

Outro caso

Há um mês, por 7 votos a 3, o STF acolheu denúncia similar contra o senador João Ribeiro (PR-TO), por “redução a condição análoga à de escravo” de 35 trabalhadores de sua fazenda, situada no município de Piçarra, na divisa de Pará com Tocantins, a 550 quilômetros de Belém.

Naquele julgamento, Rosa Weber ainda não integrava o tribunal, mas sua antecessora, a ministra Ellen Gracie — que se pronunciara anteriormente — formou a maioria cujo entendimento foi reforçado na sessão desta quinta-feira.

Entenda

A precariedade das condições do local onde dormiam os 53 trabalhadores resgatados chamou a atenção dos fiscais. O alojamento estava muito sujo e exalava mau cheiro. No lugar de janelas, havia buracos de um metro acima das camas superiores dos beliches, feitos de cimento, de modo que quase nenhuma ventilação chegava aos trabalhadores. O ambiente abafado fazia com que muitos deixassem seus quartos, em plena madrugada, em busca de ar fresco.

Em vez de colchões, os trabalhadores recebiam espumas envelhecidas, sujas e rasgadas, com espessura entre cinco e dez centímetros, sem condições para higienização e repouso, segundo o relatório do Grupo Móvel, principal peça de acusação. Não eram fornecidas roupas de cama nem travesseiros.

Também não eram oferecidas instalações sanitárias nem abrigos contra intempéries nas frentes de trabalho, de acordo com a denúncia. Para se protegerem das chuvas, os trabalhadores tinham de se refugiar sob pequenos toldos de lona plástica fixados em alguns dos ônibus, que mal podiam cobrir uma dezena de pessoas.

“No lugar de instalações sanitárias, ofereciam-se aos trabalhadores arremedos compostos de choças improvisadas mediante o uso de lonas plásticas que, ironicamente, durante a inspeção, vimos o vento derrubar um deles”, contaram os auditores. “Ao vê-la no chão, vimos que não caíra somente uma pseudo instalação sanitária; fora ao chão mais do que isso: caíra a farsa, pois aos olhos de todos se apresentou um amontoado de lona ao lado de uma cadeira higiênica daquelas utilizadas por doentes em hospitais sobre o chão natural sem vaso e sem nenhuma espécie de fossa”, emendaram.

Ameaças à saúde

Nas frentes de trabalho, segundo a denúncia, nenhum dos trabalhadores recebia todos os equipamentos de proteção individual, alguns não utilizavam nenhum dos itens obrigatórios, e outros usavam objetos danificados, como botinas, perneiras e luvas rasgadas. “Quase todos utilizavam luva somente numa das mãos. Não utilizavam óculos com certificado exigido pela legislação; alguns óculos encontrados pelo Grupo Móvel estavam sobre a cabeça dos trabalhadores, não sobre os olhos; em lugar das lentes, havia tela de arame”, segundo a acusação. Também não foram encontrados materiais de primeiros-socorros para atender a emergências básicas, como cortes e queimaduras.

Os fiscais também identificaram problemas na alimentação dos trabalhadores. Na falta de refeitório, eles eram obrigados a fazer as refeições sentados em bancos improvisados, sobre torrões ou no chão, e se alimentavam sob o sol e a chuva, porque não era fornecida proteção contra intempéries, de acordo com os fiscais.

A comida também era alvo de reclamações dos trabalhadores. Alguns relataram que muitas vezes, apesar da fome, não conseguiam comer por causa da qualidade da refeição servida, comprada de uma “churrascaria”, à base de mandioca ou cuscuz com salsicha. Aqueles que levavam refeição de casa não recebiam marmitas para aquecer os alimentos. Omissões que, segundo os fiscais, favoreciam o surgimento de doenças estomacais, diarréias e cólicas.

A água consumida no alojamento e nas frentes de trabalho era impura. O gelo colocado na água era manuseado por mãos sujas. Não havia isolamento térmico nos tonéis, onde a bebida era armazenada. A água era despejada nas garrafas distribuídas aos trabalhadores por meio de mangueiras empoeiradas. No alojamento, o único bebedouro existente estava danificado, o que obrigava os trabalhadores a beberem água da torneira dos lavatórios.

Jornada exaustiva

Os cortadores de cana começavam às 4h30 e só paravam às 15h, com um intervalo de uma hora e meia para o almoço. Eles derrubavam em média de quatro a sete toneladas de cana por dia. Alguns chegavam a derrubar até 11 toneladas. Para os operadores de trator, a jornada podia ser ainda mais extensa. Alguns trabalhadores reclamaram de atraso no salário e de, não raras vezes, terem recebido como pagamento cheques sem fundo.

Em depoimento incluído no processo contra João Lyra, o operador de trator José Cândido da Silva contou que revezava com colegas em três turnos de trabalho. Quando começava às 17h, por exemplo, só largava o serviço por volta das 9h no outro dia. Cândido afirmou que chegou a trabalhar dois turnos seguidos, fazendo mais de 24 horas de trabalho para substituir um colega.  Segundo ele, apesar da jornada exaustiva, as horas extras não eram pagas. O operador disse ainda que não tinha intervalo para almoçar e que, muitas vezes, se alimentava em cima do trator em movimento.

Os fiscais também registraram reclamações dos trabalhadores em relação à forma com que seu trabalho era aferido. “Todos se sentiam ainda mais injustiçados pelo aferimento da produção que era feito medindo a área cortada, de forma linear, por meio de uma braça de comprimento. O apontador, ao movimentar a vara, sempre o faz de forma a diminuir, no terreno, a área de cana cortada pelo trabalhador”, anotaram os auditores.

Eles também encontraram problemas no serviço de transporte, considerado precário e irregular. Os trabalhadores eram transportados em veículos velhos e mal conservados que não tinham autorização para fazer esse tipo de serviço. Alguns bancos eram sustentados por pedaços de madeira. Dentro deles, pessoas dividiam espaço com facões e instrumentos pontiagudos feitos de bambu para tirar a cana do caminho.

Contradições

“Em resumo, o que encontramos configurava um quadro de profundas agressões aos direitos humanos dos trabalhadores, além de ser um flagrante desrespeito a vários dispositivos legais promulgados com o objetivo de propiciar garantias mínimas aos direitos humanos laborais”, diz o relatório do Grupo Móvel, assinado pelos auditores fiscais do Trabalho Luiz Carlos dos Santos Cruz e Dercides Pires da Silva em 28 de fevereiro de 2008.

O teor da denúncia contrasta com a apresentação feita pelo próprio Grupo João Lyra em sua página na internet. “Atuação empresarial com visão de futuro e responsabilidade social. Esse é o principal lema do conglomerado de empresas do Grupo João Lyra, sediado em Alagoas, com ramificações nos estados da Bahia e de Minas Gerais. São, no total, dez empresas dos ramos da agroindústria sucroalcooleira e de fertilizantes e adubos, além das que pertencem aos setores automobilístico, de transportes aéreos e hospitalar”, afirma a empresa.

Em agosto do ano passado, a empresa foi acusada novamente de explorar 207 trabalhadores em condições análogas de escravo. Dessa vez, em sua unidade em Capinópolis (MG). O Ministério Público do Trabalho em Minas informou que negocia um termo de ajustamento de conduta com a Laginha. O Grupo João Lyra possui cinco usinas de grande porte, produz mais de 300 mil metros cúbicos de álcool e 6,5 milhões de sacas de açúcar dos tipos VHP, cristal e refinado.

R$ 196 milhões

A Laginha Agroindustrial é a propriedade mais valiosa na relação dos bens declarados por João Lyra à Justiça eleitoral. A empresa está avaliada em R$ 196 milhões. O deputado aparece, ainda, como dono de outros R$ 16 milhões em ações incorporadas ao capital da empresa.

O Grupo João Lyra, do qual a Laginha faz parte, é formado por dez empresas dos ramos da agroindústria sucroalcooleira e de fertilizantes e adubos. Possui também concessionária de automóvel, empresa de táxi aéreo e um hospital.

São cinco usinas de grande porte: Laginha, Uruba e Guaxuma, em Alagoas, além da Triálcool e Vale do Paranaíba, em Minas Gerais. Juntas, elas são responsáveis por uma produção de mais de 300 mil metros cúbicos de álcool e de mais de 6,5 milhões de sacas de açúcar dos tipos VHP, cristal e refinado.

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