Duas Cidadanias

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“A servidão começa pelo sono. Mas um povo que não acha repouso em situação alguma, que se examina sem cessar e sente a dor por toda parte, é quase impossível adormecer”.

Montesquieu.
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É mais ou menos consenso ou voz corrente a repetição do conceito clássico de democracia, como sendo o “governo do povo” (para o povo e pelo povo, acrescentam alguns). Repetidamente, isto não passa de retórica vazia. A cidadania pode ser enquadrada em dois espectros: a política e a civil.

Em democracias consolidadas e não sujeitas aos solavancos existentes em cenários sócio-políticos ainda em construção, como o caso brasileiros, pode-se dizer que a cidadania civil se consolida por meio de instrumentos políticos, mas não se vale exclusivamente destes para ser verificada no cotidiano social.

Isto porque, apreciando suas quatro características fundamentais, as mesmas podem ser percebidas, facilmente, em todos os países que se assumem como democracias:

1) A realização de eleições periódicas, institucionalizadas, livres e que sejam marcadas pela verdadeira e lícita competição entre os postulantes;

2) A previsão de um sistema constitucional-legal que respalde todos os direitos e liberdades incluídos na definição do regime democrático;

3) A garantia de um sistema jurídico que impeça que pessoas, partidos políticos ou instituições sociais estejam acima da Lei (“legibus solutus”); e,

4) O estabelecimento do sistema de freios e contrapesos, em que TODOS os Poderes existentes em um Estado de Direito estão submetidos, reciprocamente, à autoridade legal dos outros Poderes.

No que concerne ao processo eleitoral, esmiuçando o primeiro item, é o próprio regime democrático que estabelece a liberdade como premissa fundamental, impedindo que partidos, candidatos e eleitores se submetam a qualquer tipo de ameaça ou coação, nem material, nem física, nem moral e nem psicológica. E, em consequência, que as mídias em geral estejam sob vigilância para não perpetrarem qualquer movimento em favor ou desfavor de candidatos, atuando indevidamente sobre o eleitorado.

Quanto ao segundo, em relação aos direitos e liberdades sócio-políticos-eleitorais, o regime de democracia vigente é quem respalda, referenda e legitima a participação de todos os cidadãos (conforme a faixa etária definida pela legislação), em que se materializa o direito de votar e de ser votado.

Todavia, neste diapasão, um recurso previsto nas normas regentes é de inexistente aplicação em nossa frágil democracia, qual seja a da aferição do cumprimento efetivo ou implementação dos programas de gestão veiculados durante a chamada campanha eleitoral. Isto porque, é da característica essencial da democracia que, por meio do voto popular, seja derrubado, legítima e pacificamente, um governo para a ascensão de outro. A não-utilização deste expediente se dá, fortemente, pelo desinteresse político dos eleitores que não tomam ciência dos materiais publicitários (propaganda eleitoral oficial), nem acompanham os amplos debates entre os candidatos, para conhecer seus projetos de poder, assim como, de regra, não se faz qualquer análise da história pessoal e política dos postulantes a cargos no Executivo ou no Legislativo e o cotejo, destas, com as propostas programáticas apresentadas durante as campanhas.

O terceiro e o quarto itens, estão afetos à isonomia entre os Poderes, harmônicos e independentes entre si, conforme a redação constitucional brasileira, confere a cada um deles, a liberdade para o exercício político da democracia, por parte tanto dos agentes políticos quanto, coletivamente, das instituições estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário). É o sistema jurídico e o próprio Estado (Democrático) de Direito que decretam e respaldam o conjunto de direitos, liberdades e deveres pertinentes ao ente estatal. E isto consolidado pelo acesso amplo e irrestrito à informação, inclusive pelas balizas da recente Lei de Acesso à Informação.

Com tudo isto, entretanto, ainda há um elemento que gravita em torno da Democracia, e que diz respeito à cidadania, também enquanto retorno da atuação dos governos, seus agentes e do Estado como um todo: a condição individual e social dos cidadãos, diante da vigência e aplicação de diversos modelos sócio-político-econômicos. Mesmo que o governo tenha sido democraticamente eleito, quando o mesmo se revela ineficiente, ineficaz e incapaz de melhorar a situação de um sem-número de pessoas e, em várias situações, como a presente, resulta na clara e evidente piora, estamos diante de uma realidade ética e politicamente repugnante.

A realidade de cidadãos marginalizados e afastados, em termos de mínimo acesso, aos resultados da riqueza da vida comunitária em paralelo a “cidadãos de primeira classe” que usufruem de bens e serviços em função de recursos financeiros, exclusivamente, nos endereça ao conceito de cidadania social, que suplanta o da mera cidadania política. Seria como: sim, votamos! Mas morremos de fome!

Para um enorme contingente populacional no Brasil, o Estado Democrático inexiste!

Então, para iniciar e manter, permanentemente, debates sobre o aperfeiçoamento de nossa Democracia e do Estado, temos que nos centrar na aplicação de políticas capazes de produzir igualdade com fraternidade, superando a condição confortável da indiferença em relação aos atores que estão ao nosso derredor, em que há um crescente contingente de pessoas mutiladas em face de políticas concentradoras de renda e poder, que desembocam na desagregação e violência social.
Como afirmou o saudoso filósofo Emmanuel Levinas, “É minha responsabilidade, diante de um rosto totalmente estranho e sofredor que me fita, que constitui o dado primitivo da fraternidade”.

Portanto, se quisermos, realmente abandonar a generalidade etimológica da definição de Democracia (meramente política) para aprofundar seu conceito, alcançando outra Democracia (a social), é preciso se debruçar ativamente sobre ela, além do minimalismo e do processualismo, para, numa abordagem realista, tentar compreender melhor a dinâmica da nossa realidade democrática, que segue em construção permanente, a fim de encontrarmos caminhos que possibilitem à comunidade nacional corrigir injustiças de natureza socioeconômicas e civis, perpetradas no passado remoto e recente, assim como no presente. Isto em uma aposta contínua, inclusiva e universalista.

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