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Deus e Política para uma espírita laica

Conversar com livros é algo extremamente prazeroso.

O livro fala, nós problematizamos, com as ideias dialogamos . Faço este exercício com inúmeros autores, artigos, pensadores que geram conteúdos e nos salvam do vazio consumista devorador de subjetividades.

Agora resolvi confrontar com carinho o livro Deus e Política – Enredo da morte no Brasil, de minha autoria.

“Mesmo admitindo desencontros, nós sabemos que os braços largos do Espiritismo não se fecham sobre perspectivas meramente terrenais, assim como não se desligam da Terra. Se há disputas que revolvem os pensamentos, a ética e a moral espírita seguem incólumes”, encontramos na página 17.

Onde estarão os desencontros na alçada da vivência espírita? Talvez estejam na própria concepção deste tipo de vivência, de modo particular em nosso país, onde uma corrente religiosista logrou atribuir ao espiritismo um ativismo caritativo.

Os braços largos do espiritismo alcançam a matéria e o espírito, em um amálgama teórico consolador diante das contradições do existir. Podemos negar as necessidades de consolo? Talvez nem devamos, porque cada alma porta suas solidões e nelas se concretizam dramas e superações. Nem mesmo o espiritismo laico se oferece meramente materialista, e considera o ser integral com suas demandas, que vão desde as sobrevivências materiais, aos aspectos psicoemocionais que nos caracterizam.

Afetados pelas estruturas relacionais da sociedade capitalista, machista, classista, na qual vivemos, obviamente reproduzimos em maior ou menor proporção traços de disputas entre nós mesmos. Como isso se manifesta na alçada da inconsciência e absorção de modelos e padrões, a primeira tendência poderá ser a negação desse fenômeno, no entanto, o texto não pleiteia o agrado nem o desagrado, porque é analítico e independente.

O que consideramos como abertura a um questionamento interessante é a frase que assevera que apesar das intempéries relacionais a ‘ética e a moral espírita seguem incólumes’.

Apesar de ser autora da escrita encontrada no livro publicado no ano de 2020, tenho mantido a abertura para transformações, e considero mais definida a laicidade do meu próprio perfil a partir do ano de 2022. Assim sendo, localizo uma perspectiva encoberta por certo romantismo voltada a essa ética e moral acima citadas.

Pela diversidade de perfis espíritas, e inevitável variedade interpretativa destes grupos sobre espiritismo, o que restará protegido das afirmações trazidas por Kardec? Chegando neste núcleo, tendemos a fechá-lo protegendo a teoria original com a própria força, como se isso a isolasse dos religiosismos, holismos e sincretismos representados nos centros e nas ações dos seus frequentadores.

Sendo ética e moral energias de subjetividade, aos poucos vamos admitindo que um diálogo mais rígido pode contribuir para a geração de tabus, atrasando o tempo das mentalidades renovadas. Por esta razão o tópico nos inquieta.

Duas páginas à frente encontramos: “Espiritismo é conservadorismo? Como associar conservação e evolução? Pensamentos de liberdade fogem à regra e se lançam na psicosfera. Saber sobre a existência dos espíritos como algo intrínseco à nossa própria existência legitima nossa voz e fortalece o pensamento libertário, porque viver se torna mais do que receber qualquer tipo de autorização ou passar pelos crivos de aceitação humana; viver é experienciar e aprender para melhorar o que se é. Mas para tanto, é necessário  que conheçamos nossas potencialidades e alcances pessoais e coletivos”.

Quase posso ouvir o eco dos espíritas tradicionais brasileiros respondendo que sim! Afirmando que espiritismo é conservadorismo, porque o viés moralista que por este meio grassa induz a este tipo de gesto espontâneo, advindo de uma domesticação secular do pensamento.

Contudo, como podemos evoluir, sem deslocar, revolver, ressignificar convicções e entendimentos? Como ir para frente sem deixar o antigo com suas limitações, para trás?

Pensamentos sobre liberdade é um chamado fiel à autonomia, crescimento real, que não pode fugir do confronto consigo, deixando descamar as ilusões que sugerem conforto mas atuam como grilhões.

A informação sobre a existência eterna não deveria ser transformada em documentos de cobrança, mas ecos de libertação, que nos movessem para novas formas de relações uns com os outros e de todos para com a sociedade que criamos. Assim cairiam por terra as opressões justificadas. Os mandos descabidos. As explorações que ferem o direito primordial de existir para a realização do projeto natural de vivência feliz, não seriam mantidas.

O conhecimento das nossas potencialidades e alcances coletivos nos configurarão possibilidades ainda negadas. Porque a era da obscuridade não foi suplantada pela ciência nem pela tecnologia, pois sua raiz é espiritual, e o elemento pontual da transformação subjetiva se chama política, uma designação minimalista do poder de intervenção das nossas descobertas futuras.

Por enquanto algumas pílulas de questionamentos conseguem nos desemperrar as janelas das nossas velhas almas.

SOBRE O AUTOR

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