Descendentes de escravos temem perder terras por conta do aumento de impostos nos Estados Unidos

The New York Times

Ilha Sapelo, Geórgia – A partir do momento em que as cobranças de impostos sobre as imensas propriedades começaram a chegar, os telefones começaram a tocar. Não levou muito tempo até que as pelo menos 50 pessoas que vivem nesta ilha de barreira pouco desenvolvida percebessem que a vida estava prestes a ficar mais difícil.

A Ilha Sapelo, uma mistura confusa de pântano salgado e areia à qual se chega apenas de barco, abriga a maior comunidade de pessoas que se identificam como os “Geechees da água salgada”. Às vezes chamados de Gullahs, eles habitam a costa sudeste do país há mais de dois séculos. A sua cultura é uma das mais frágeis dos EUA.

Durante muito tempo, esses descendentes de escravos, falantes de crioulo, guardaram a sua terra como um marco, lutando contra o tipo de desenvolvimento que transformou as ilhas de Hilton Head e Saint Simons, na Geórgia, em destinos de férias. Agora, aumentos severos de impostos motivados por mudanças econômicas, confusões burocráticas e o desejo obstinado de muitas pessoas em ter uma casa na água os deixaram se perguntando se sua comunidade finalmente irá sucumbir à erosão cultural.

— Isso tudo cheira mal — diz Jasper White, cuja mãe, Annie Watts, de 73 anos, ainda mora na casa de três quartos com teto de latão na qual ela cresceu.

Ela pagou 362 dólares em impostos territoriais no ano passado pela terra onde mora. Neste ano, o condado de McIntosh quer 2.312 dólares, um aumento de quase 540 por cento.

No que diz respeito ao setor imobiliário, a história não sai da cabeça dos Geechees, que vivem em um lugar chamado Hog Hammock. É difícil para eles não suspeitar profundamente do aumento de impostos e se perguntar se, como no passado, não estão sendo forçados a ir ainda mais para as margens.

As terras onde moram são as únicas propriedades privadas que sobraram na ilha, já que quase 97 por cento dela pertence ao Estado, que cede as terras para iniciativas de preservação ambiental, projetos de pesquisa da marinha e um casarão de plantação construído em 1802.

R.J. Reynolds Jr., herdeiro de um empresário do ramo do tabaco, comprou o casarão e a maior parte da ilha durante a Grande Depressão, persuadindo os Geechees, que eram donos do restante das terras, a se mudarem para os 162 hectares pantanosos que restavam no interior da ilha. Hoje, Hog Hammock se resume a uma série de pequenas casas e um cemitério histórico, com uma mercearia empoeirada e um restaurante que funciona em meio período, chamado Lula’s Kitchen, onde camarão e salsicha são transformados em um cozido ao estilo da costa dos Estados da Carolina do Sul e Geórgia, um exemplo clássico da culinária das Sea Islands.

Esse tipo de história faz com que seja difícil acreditar nos funcionários do Condado que dizem que não há nenhuma iniciativa em andamento para forçá-los a deixar a terra. O Condado ofereceu reduções de 15 por cento nos impostos até que os recursos apresentados pela maioria dos Geechees possam ser julgados. Mas será difícil pagar até mesmo a taxa reduzida. Embora seja possível cozinhar ou fazer limpeza no casarão, trabalhar na manutenção das instalações de pesquisa do Estado ou alugando espaços para turistas, é difícil obter renda.

A relação entre os moradores da Ilha Sapelo e as autoridades do condado estão desgastadas há tempos, especialmente por conta de questões raciais e desenvolvimento. Em julho, a divisão de relações comunitárias da Secretaria de Justiça realizou dois encontros com moradores para tratar de acusações de discriminação racial. Um porta-voz da secretaria disse que os encontros foram confidenciais e não quis comentá-los.

O avaliador chefe de impostos, Rick Daniel, e outras autoridades eleitas do condado, tampouco quiseram comentar a questão. Porém, Brett Cook, que administra o Condado de McIntosh e sua única cidade, Darien, diz que o governo local faz bastante para apoiar a cultura Geechee.

— É uma história maravilhosa e uma atração imensa para nosso ecoturismo — disse ele.

Neste verão, assinalou Cook, o condado trabalhou com o Instituto Smithsonian para receber um festival que culminou em um concerto com membros da Orquestra Sinfônica de Atlanta e o Geechee Gullah Ring Shouters, grupo que pratica um estilo de canto com palmas desenvolvido pelos escravos.

A questão, disseram Cook e outras autoridades do condado que falaram sob a condição de que seus nomes não fossem citados, não é de genocídio cultural. Eles estão somente tentando remediar anos de má gestão e corrigir os impostos territoriais que foram mantidos artificialmente baixos por políticas questionáveis.

O Condado de McIntosh tem um histórico de erros burocráticos e corrupção eleitoral. Sua paisagem política problemática foi tema de um livro de não ficção, “Praying for Sheetrock”, de Melissa Fay Greene, que detalha a segregação racial e a luta nos anos 70 entre um xerife branco dominador e as pessoas que queriam eleger a primeira autoridade negra do governo.

O condado, que tem aproximadamente 14 mil moradores permanentes e outros milhares que possuem casas de veraneio, postergou durante anos a revisão de suas taxas de imposto territorial. Uma última avaliação foi feita em 2004. Paul Griffin, presidente do Comitê de Avaliação de Impostos do Condado de McIntosh, chamou o trabalho de “muito, muito mal feito” em uma reunião coberta pelo jornal The Darien News em junho deste ano.

Em 2009, o condado estava no processo de atualizar seus impostos quando o Estado congelou os tributos para impedir o agravamento dos efeitos da recessão, iniciada com a crise no ano anterior. Em vez de continuar seu trabalho, o Condado simplesmente interrompeu o processo até este ano.

Enquanto isso, propriedades foram vendidas – algumas delas para pessoas ricas interessadas em casas de veraneio no continente e na Ilha Sapelo. Até hoje, essas vendas não haviam sido contabilizadas no registro de impostos.

— Somos rurais, estamos no litoral e isso tem apelo — disse Cook. — Quando o mercado esquentou, há seis ou sete anos, muitos indivíduos que tinham lotes de 15 mil dólares ou 20 mil dólares no pântano conseguiram vendê-los por 100 mil ou 150 mil dólares.

O condado também implantou um novo serviço de coleta de lixo e acrescentou outros, que contribuíram para aumentar os impostos, disse Cook. Os moradores da Ilha Sapelo, no entanto, ainda precisam levar seu lixo para o aterro.

— Nossos impostos ficaram extremamente altos, mas nada justifica isso — disse Cornelia Walker Bailey, historiadora não oficial da ilha. — Onde fica meu corpo de bombeiros? Onde estão meus recursos hídricos? Onde está minha rua pavimentada? Onde estão as coisas pelas quais nossos impostos pagaram?

Aqui, onde a propriedade normalmente é passada ou vendida por taxas abaixo das praticadas no mercado para outros familiares, Bailey acabou com quatro pedaços de terra. Ela vive em um, que é protegido dos aumentos de impostos por uma isenção de lote cedido pelo governo. O resto custará a ela 600 por cento a mais em impostos territoriais. — Acho que é uma tentativa de retirar todo mundo do último setor privado desta ilha — disse Bailey.

Foram desenvolvidos projetos de governo para tentar salvar a cultura Geechee da Ilha Sapelo. Hog Hammock está no Registro Nacional de Lugares Históricos, e o Estado criou a Autoridade de Patrimônio da Ilha Sapelo em 1983, supervisionada pelo governador. Mas os críticos argumentam que a autoridade poderia servir como um veículo para mais desenvolvimento.

Legisladores estaduais discutiram a criação de um consórcio que protegeria a terra do desenvolvimento, permitindo que os moradores que não têm como manter suas propriedades fiquem na ilha. Até agora, porém, isso é apenas uma ideia.

Nada disso oferece um alívio imediato para os moradores que têm contas de impostos empilhadas na mesa da cozinha e gavetas de escrivaninha.

Sharron Grovner, de 44 anos, é uma delas. Sua mãe, Lula Walker, administra o pequeno restaurante da ilha. Grovner enterrou seu pai não faz muito tempo. Sua família tem mais de 1,6 hectares de propriedade e terá de pagar mais de 6 mil dólares em impostos. Como a maioria, eles levaram um recurso à Justiça.

— Você pode fazer o melhor possível em um ano, mas mesmo assim precisará de algum tipo de ajuda —, disse ela.

Ainda assim, eles não vão desistir da terra.

— É assim — afirma. — Pessoas como eu não vendem sua propriedade.

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