Crônica: O Esboço, por Fernando Caldas

A noite seguia alta quando Flora encerrou os serviços domésticos. Suspirou, esticando a coluna. Estava enfadada. Dez horas de trabalho na firma em que atuava como corretora de seguros e aquela pilha de pratos acumulados de dois dias, além da cozinha para deixar pronta a comida do dia seguinte.

Treze anos desde que Maurício a cativara com seu jeito sedutor. Feliz até o sexto ano, quando ele, abstêmio resolveu que não faria mal tomar só um gole de cerveja para comemorar o campeonato conquistado pelo seu time de coração, o Galo da Pajuçara. Rogou improficuamente para que não fizesse tal bobagem. Sabia que ele provinha de uma família de alcoolistas e que era mister sempre evitar o primeiro trago. Ouvidos moucos, a noitada se prolongou para o dia seguinte e o gosto pelo álcool prorrompeu qual uma chuva vigorosa numa imensa tempestade, a inundar de dores o então afortunado ninho familiar.

Foi-se o plano de engravidar, quase prestes a se realizar. Não se sentiria segura em trazer ao mundo uma criança em condições quais aquela. Visitas aos Alcoólicos Anônimos, ao Alanon, orações de todos os credos… ouvia-o afirmar centenas de vezes que bebia por querer, não era doente e que pararia quando bem entendesse, mas entre o querer e o fazer, havia um intransponível abismo que os afastava a cada dia da felicidade. Aguentava firme as investidas dos seus ciúmes, mas naquela semana ele extrapolara os limites da sua tolerância. Entrou no quarto sem acender as luzes, para não despertar o sono do parceiro, que seguia narcotizado, hebetado sobre o leito de casal, a ressonar profundamente, num assovio interminável. Deixou o corpo relaxar sob a água morna que deliciosamente escorria por seu gracioso corpo.

Nunca se achou bela, mas tinha um quê que atraía os olhares masculinos. Talvez os lábios carnudos e proeminentes, com um perfil acentuado pelo nariz levemente arrebitado que a genética de sua mãe lhe presenteara. No mais, era mulher de feições comuns. Uns dois namoricos fortuitos, após debutar e logo Maurício lhe arrebatara o coração, pela simplicidade de alma e seu jeito tímido de ser. Conhecera-o no final do ensino médio, sendo que já cursava o último ano, enquanto ele ainda ralava no primeiro, motivado pela repetência sequenciada de dois anos.

Estudavam ambos no “Moreira”. Concluso o curso, mantivera o romance aceso, buscando acesso à universidade, enquanto ele se mantinha no colégio. Conseguira às custas de muito estudo ser aprovada em Administração. Ouvia do banheiro os roncos entremeados de apneias, e temia que a qualquer hora ele sufocasse sem retorno. Retoma a meada dos pensamentos. Precisava dormir logo. Rapidamente escovou os dentes, jogou algum creme sobre o corpo, bebeu um gole d’agua, e deitou-se de leve para não baloiçar a cama e tentou um “Pai Nosso”. Perdia-se no meio da oração, espírito atabalhoado. Oh Deus, nem orar conseguia!

Na penumbra do quarto, lembrava a conversa com Marisa, a amiga pernambucana. Contara-lhe sobre as duas vezes em que Maurício a agredira transtornado de ciúmes. A primeira em comemoração ao sucesso da empresa, quando recebera um prêmio financeiro após conquistar o segundo posto de vendas. Dizia que eu olhava em demasia para o chefe, solícito companheiro de trabalho e em caminho de casa, empurrou-a, enquanto ela estava ao volante do veículo. Fora há três meses. Sofreu calada aquela injúria, aceitando perdoá-lo por afirmar não se lembrar. Há dois dias, após referir-se à beleza de Tom Cruise, sentiu o safanão às costas que lhe retirou o equilíbrio e a fez cair inapelavelmente sobre o móvel da sala. Marisa, colega de trabalho em franquia da Veneza Brasileira, assumiu ares de assustada e indagava como se submetera àquela situação deveras delicada e perigosa.

Não assistia aos noticiários diuturnos, dando conta do aumento do feminícidio no Brasil? Aquela condição não poderia persistir. Pedisse naquele mesmo dia a sua transferência para outro estado… sua folha de serviços e extrema competência profissional dar-lhe-ia acesso a qualquer das afiliadas do país.

Findo o almoço, decidira falar com o chefe. Efetivamente a situação se tornara insustentável, precisava tomar uma atitude drástica, sendo assessorada pela amiga naquele tentame. O chefe se negava a liberá-la, reputando-a como essencial para o momento da empresa, mas diante da problemática ali exposta confidencialmente, abriu uma exceção, propondo-lhe antecipar suas férias e bonificando-a com mais uma quinzena. Marisa propôs irem ao Recife naquela madrugada. Retornaria à sua cidade natal antes do dia raiar, movida pelos compromissos adredemente assumidos. Preparasse as malas e lhe desse um aceno até as três e meia da madrugada. O coração batia no peito, num ribombar audível aos próprios ouvidos. Levantou-se de leve, retirou a mala grande do maleiro e as duas valises, jogou as roupas dentro, sem jeito, trocou a camisola por uma blusa polo, vestiu uma calça jeans, calçou um par de tênis, apanhou a nécessaire recheando-a com os produtos de toucador, esvaziou as gavetas do que lhe pareceu necessário.

Ao fundo, reviu a própria silhueta, num papel de desenho, que a arte do parceiro iniciara sem concluir, em perfil, seminua, toalha sobre a cabeça e seios à mostra. Verteu furtiva e rápida lágrima, empertigou-se, arrastou as malas até a sala, junto à porta, ligou para a amiga. Recife as esperava.

Cedo, Maurício despertou, sentiu a solidão na cama. Saltou e apenas viu na gaveta aberta, a silhueta da mulher que acabara de perder.

Maceió, 16 de junho de 2020.
Fernando Silva Caldas.

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