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Crônica de uma memória sagrada: Bom Despacho, povoado quilombola

Memórias podem ser sagradas. Reverencio minhas memórias da infância e sua rica pertença à história do meu povo. Eu que acredito que amor não morre, vejo amor naqueles dias, quando pulava sobre a carroceria da caminhonete e seguia com meus avós e tios rumo a Bom Despacho, participar dos preparos da festa.

Naquele período eu não sabia que pisava um chão quilombola. A negritude era tão comum quanto a pobreza, ou a simplicidade daquela gente que acolhia a chegada da minha família com lautas panelas de frutos das águas.

Como a minha preferência era brincar entre as portas laterais da igreja que dava para o cemitério florido, pouco me importava o que os adultos comiam, pois me entregava àquela visita às catacumbas enfeitadas sem me importar com a morte nem mesmo com a contaminação daquele campo santo onde tudo era no barro.

Foram muitas as viagens, e ainda lembro o quanto a ladeira alta me assustava e até causava náuseas. Mas adorava ir! Porém, nenhuma memória é mais forte do que a daquela vez que fui à noite, para a festa de Nossa Senhora das Candeias, de quem meu avô, Antonio Laurindo, era devoto.

Fui compreendendo a razão daquelas idas a Bom Despacho, da pintura da igreja, da compra de flores e do respeito que todos tinham pela santa, pois meu avô era patriarca, sisudo e influente naquele local, onde moravam inúmeros fregueses de sua loja de móveis.

A relação era de tanta confiança, que muitos compradores recebiam os móveis em casa, pois meu tio ou meu pai levavam até lá e pagavam semanalmente com parcos valores, até quitarem. Não havia espaço para calotes.

Mas voltando à festa, lembro bem que o largo defronte à igreja era marcadamente delineado ao centro pelo clarão de um lampião, única luz daquela localidade. Meu avô estava envolvido com a história do lampião e nossa ida a Bom Despacho naquela noite era uma espécie de celebração à presença da tecnologia na festa de Nossa Senhora das Candeias.

Passado o choque cultural de ver uma festa tão mal iluminada, acostumei com o ambiente noturno ensombreado e aproveitei o que pude, porque esta característica me tornou criança feliz e curiosa em qualquer situação.

Passou o tempo.

Minha vida se voltou a Maceió, outras histórias entraram no lugar das histórias antigas. Meu avô desencarnou e aos poucos a poeira me lembrava a entrada de Bom Despacho quando me dirigia às praias daquela bela região.

Quando me tornei professora, cientista social, descobri que o povoado Bom Despacho, pertencente a Passo de Camaragibe é oficialmente quilombola e pasmei na falta de estudo, de visibilidade, de resgate identitário ou cultural negro; todos os meus vínculos com o lugar eram católicos.

Nesta curiosidade estagnei por muitos anos, até que mais de 40 anos depois eu voltei lá.

As casas de taipa e tetos de palha de coqueiros não existem mais, e isso é bom. A igreja linda, caminhando para os seus 250 anos de construída embeleza o lugar, mas quando fui visitar o cemitério onde brincava com as flores no período da infância encontrei triste visão.

Abandono, descaso, um odor de morte social intenso.

Recuei da entrada e saí observando dois homens negros que bebiam cachaça ali por perto.

Tantas mudanças, menos uma: a história da negritude invisibilizada e a ausência de perspectivas engolida com alcoolismo.

Para famílias como a minha, o elo da fé benevolente na padroeira. Para o poder local, ambiente de visitas temporais e relações eleitoreiras, como acontece a todos os rincões alagoanos.

Queria chorar o tempo ido, ter tomado ciência do que vivia, aproveitado mais aquele cemitério, aqueles peixes cozidos na panela de barro, aqueles rostos sem nome que conheciam tão bem o meu rosto. Mas já passou o tempo que gerou essa crônica de afeto entristecido.

Salve Nossa Senhora das Candeias e seu povo quilombola da montanha praieira, amparados pelo instinto de sobrevivência temperado pela brisa que vem do mar. Salve as verdades que não foram ditas e todas as histórias que um dia possam ser contadas.

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