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Crônica de uma doce solidão

As vezes sou tomada por solidões primevas.

O mundo e todas as relações se condensam, mas eu pulo fora para observar os dias, principalmente aqueles que se foram, deixando rastros.

Assim, como se fosse do nada, revi um velho doceiro que morava na esquina à esquerda da rua onde cresci, e fiz um mea culpa saudoso e compreensivo sobre a ignorância de todos nós, seus vizinhos, que não sabíamos o quão raro se tornaria ter um doceiro daquele tipo por perto.

O odor adocicado da rua pertencia a ele.

Baixinho em estatura, um pouco gordo e bonachão (como todos os bons velhinhos das crônicas) era compenetrado no que fazia e não prestava atenção aos carroceiros, caminhoneiros e ciclistas que passavam pela esquina.

Em uma das voltas da vida, enquanto eu aprendia a dominar a bicicleta mas ainda não mandava nela, errei o movimento e dediquei em um segundo toda a força do meu corpo na direção do portão de madeira que dava acesso ao seu quintal, local sagrado onde existia um grande fogão de barro e seus religiosos tachos, além da bancada que recebia doce para esfriar.

Caí junto com o portão e estava mais machucada pelo medo do que viria do que pelos ossos da perna, que doíam.

Lembro a voz da mulher que correu da cozinha mas não conseguiu me identificar, e berrando “filha da peste!” me fez ser mais rápida do que o vento, passando pela frente da minha casa em disparada, fingindo não ser da vizinhança.

Funcionou!

A queixa nunca chegou aos meus pais e assim pude continuar bicicletando pelo mundo.

Mas no dia que aquele fogo não acendeu mais, o tacho não foi utilizado e as goiabas e bananas não precisaram mais ser amassadas e fervidas com açúcar, o cheiro adocicado foi embora, em silêncio.

Assim se renovam as solidões.

Os hábitos normalizam todas as presenças e engolem as autênticas visitas de anjos na Terra.

Para mim é muito sagrado quem vive fazendo doces.

Mas aquele doceiro não recebeu nenhum olhar de gratidão porque a infância não sabia ler vida real como a maturidade aprendeu, na força da saudade.

Que todas as goiabadas e bananadas feitas nos quintais das casas aprovem essa reverência, e levem até os doceiros essa longínqua homenagem.

SOBRE O AUTOR

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