Crack: questão de saúde pública

Sua continuidade comprova apenas a nossa suspeita de que esteja sendo implementada com o objetivo de higienizar a cidade às vésperas de importantes eventos esportivos e católico

Margarida Pressburger- presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e representa o Brasil no Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU- O Globo

A política de combate ao crack no Rio de Janeiro se revelou um completo fracasso, como já prevíamos quando de seu polêmico e midiático início, há quase um ano. As imagens recentes de um caminhão-baú transportando dezenas de dependentes químicos da cracolândia da Central do Brasil até os abrigos, ou melhor, até as casas de recolhimento da prefeitura, foram a mais completa tradução da derrota frente ao crack das medidas equivocadas de recolhimento compulsório de crianças, adolescentes e adultos viciados, adotadas pelo município.

Sua continuidade comprova apenas a nossa suspeita de que esteja sendo implementada com o objetivo de higienizar a cidade às vésperas de importantes eventos esportivos e católico.

No ano passado, em meio a um debate na sede da OAB-RJ, o secretário municipal de Assistência Social, Rodrigo Bethlem, defendeu a política por ele adotada, dizendo que se encontrasse um filho seu na cracolândia o pegaria pelo braço e o internaria, mesmo a contragosto, em uma das melhores clínicas que o dinheiro dele pudesse pagar. Ao ouvir a sua confissão, eu perguntei: por que, então, as crianças e os adolescentes dependentes não estavam sendo internados nas melhores clínicas que o dinheiro público pode pagar? A interrogação era pertinente porque, na ocasião, o governo federal destinou recursos da ordem de R$ 2,4 milhões para políticas de combate ao crack no Rio de Janeiro, assim como recentemente anunciou a liberação de R$ 3,2 milhões com o mesmo fim para o município de São Paulo.

Aterrorizada pela violência e cerceada no seu direito de andar com tranquilidade na cidade em que vive, a população quer que alguma coisa seja feita. Concordo. Alguma coisa já teria que ter sido feita muito antes da véspera da Copa do Mundo, das Olimpíadas e da Jornada Mundial da Juventude Católica. Alguma coisa teria que ter sido feita há 30 anos, quando o menino de rua pedia um trocadinho para comprar cola. Da cola ao crack foi um longo caminho ignorado pelos governos.

Alguma coisa precisa ser feita agora. E não é recolher viciados e levá-los para locais que não curam ninguém. Primeiro, porque ninguém se cura de uma dependência química se não quiser. Segundo, porque não há nada nesses locais que incentive alguém a se livrar do crack. São casas em que os dependentes vão ficar três, quatro, cinco ou seis meses, se não fugirem antes, até serem devolvidos às calçadas e às cracolândias.

O crack é terrível. Não será derrotado com políticas de enxugar gelo e de colocar dedo em bolinha de mercúrio, a exemplo de recolhimento em abrigos truculentos e posterior abandono. Talvez o seja pelo abrigamento e o acolhimento. Pelo cuidado com as crianças e os adolescentes que não foram cooptados pelo tráfico, ainda uma das maiores agências de emprego do Rio de Janeiro.

O município insiste em jogar dinheiro pelo ralo, em limpar as ruas. Esquece que crack não é assunto de xerifes, mas de médicos. É questão de saúde pública. Livrar as nossas crianças desse destino terrível é assunto de Estado e deve ser planejado.

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