Coaracy Fonseca: O alçapão

Coaracy Fonseca é promotor de justiça e ex-procurador Geral de Justiça de Alagoas

O calor que empachava o ambiente poderia vir de um cargueiro a vapor. Os dias andavam quentes demais.

O sol mostrava-se indiferente às exortações humanas, estava voltado para o seu próprio esplendor e exuberância. Egoísmo total.

Tudo estava muito abafadiço. O astro dominava impiedoso o cenário. Não poupava sequer os infantes. O desdém era cruel e pungente.

Mas um acontecimento deixou os moradores da cidade curiosos: quem era aquela moça meiga de olhos de mar que desfilava na rua central? A futrica dava seus primeiros passos.

Vestida com trajes de inverno denotava sentir frio; parecia flutuar sobre uma neve pouco espessa. Patinava com leveza e altivez.

A beleza que ostentava, deliciosamente crua, não era do tipo bibelô; era original e elegante.

Tinha o empuxo de trazer entusiasmo e gozo aos espíritos mais enfadonhos, os insípidos de vida.

A beleza é uma inteligência natural. Nada no universo é por acaso. O ser humano é dotado de senso estético.

A garota tornou-se um mistério. Passou a alimentar desejos, os mais variados.

Mas, quem a viu verdadeiramente, indagava um renomado cientista do lugar!? Um matemático aficcionado pela exatidão. Só ele não a enxergava. Que lástima!

Os curiosos não estariam a ver miragens?

Os beduínos do deserto aprenderam a discernir e procuravam seguir adiante sem se deixarem dominar pelos sentidos.

Cada observador, nessas situações peculiares, vê pelas vistas da emoção e do interesse. Alguns pela razão e pela prova.

Mas, advirta-se, aquela visão era solitária, fruto de um solipsismo profundo. Produto da narrativa de um só homem. Refletia o espelho de um coração tomado pela deusa quimera.

Como tornou-se manifesta a vários olhos? A percepção fez-se comum pelo poder da opinião.

A moça bonita já era realidade construída pelo verbo. Passou a habitar o imaginário de centenas de homens e mulheres.

Libório, um andarilho, confirmou o relato no transcorrer de uma patuscada.

Petrônio espraiou o fato entre tantos, apoderou-se da visão do peregrino; ele era um doutor respeitável. Quem haveria de duvidar? Já era fato notório.

O enredo é uma flagrante mentira. Uma falsificação da realidade. É preciso cuidado ao julgar fatos, principalmente quando calcados em pré-compreensões ou artimanhas urdidas por interesses inconfessáveis.

Atentai bem.

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