Chávez morreu. Viva, Chávez!

Carlos Pio- Correio Braziliense

Frágil como qualquer ser humano, Chávez não resistiu. O câncer levou o presidente que governou a Venezuela por 12 anos e que proclamava o desejo de seguir no poder até 2030. O mito de Chávez, porém, assombrará a Venezuela por muitas décadas— quiçá como o de Perón ainda corrói o tecido político e econômico da nossa vizinha Argentina.
Apesar de ter sido eleito e reeleito pelo voto direto e universal, é fundamental que se reconheça que Chávez jamais trabalhou para aprofundar e consolidar um regime democrático na Venezuela. Movido pelo ressentimento em relação aos partidos e às oligarquias que, desde 1958, se alternavam no comando do país em benefício próprio e não das massas pobres. Chávez investiu contra essas oligarquias: primeiro pela força; depois do fracasso do golpe de 1992, pela via eleitoral.

A partir de 1994, Chávez criou um partido (e depois o reformou), fundado exclusivamente na lealdade e na submissão incondicional de todos os membros à sua liderança, e com ele venceu as eleições presidenciais de 1998, 2000, 2006 e 2012 — além de eleições legislativas e para governos estaduais e municipais. Convocou uma assembleia constituinte e promulgou uma nova constituição (1998), que respondia mais que satisfatoriamente ao seu objetivo de exercer o poder sem amarras institucionais, pois enfraquecia tanto o Legislativo quanto o Judiciário — naturais anteparos ao exercício do poder presidencial.

Chávez também restringiu as liberdades civis da população (de propriedade, de informação, da associação, da crítica e da oposição). Alterou regras eleitorais às vésperas dos pleitos, sempre em benefício próprio, e perseguiu adversários políticos por meios diversos — processos judiciais, prisão e desapropriação. Armou grupos civis de apoiadores de seu movimento, desestruturou a economia privada, aumentando tanto a dependência em relação ao petróleo quanto a maldição dos maus governos encerrada por ela. Por fim, desde que assumiu a sua doença, escondeu suas verdadeiras condições de saúde e optou por se candidatar à reeleição, em outubro último, em vez de conduzir o país a uma transição segura de governantes.

Por tudo isso, a crítica a Chávez é que não foi um líder comprometido para construir e enraizar uma democracia verdadeira e pujante na Venezuela. Enfraquecendo as regras que impõem os “pesos e contrapesos” ao exercício do poder em suas múltiplas dimensões e perseguindo descontentes, críticos e opositores, ele enfraqueceu ainda mais os precários fundamentos institucionais da democracia venezuelana inaugurada em 1958. Para piorar, sua conversão ao socialismo o levou a usurpar as liberdades econômicas, fundamentais para o investimento privado, a geração de empregos, a elevação da produtividade e a estabilidade de preços.

Os defensores de Chávez salientam, com enorme dose de verdade, que seus governos promoveram políticas sociais que efetivamente melhoraram a vida dos mais pobres. Mas é errado supor, como fazem, que tais ganhos (palpáveis) justificam tudo o que fez o coronel.
Afinal, desde meados da década de 1990, verifica-se uma onda de políticas sociais focalizadas nos indivíduos e nas famílias mais pobres por toda a América Latina — a começar pelo Chile e pelo México, os países mais liberais da região. Em todos os casos, incluindo o sistema de bolsa família adotado no Brasil, essas políticas produziram resultados não apenas muito melhores do que aqueles obtidos na Venezuela de Chávez, mas, ao mesmo tempo, compatíveis com o aprofundamento da democracia, com o aumento da tolerância política e com a geração de riqueza fora dos domínios do estado. Por isso, é um erro grotesco inflar o mito de Chávez por conta dos ganhos sociais que produziu— algo que os populistas farão por lá e, pasmem, também no Brasil.
É bem possível que quando se publique este artigo o quadro político-institucional na Venezuela esteja mais claro. Neste momento, porém, os riscos parecem ser os seguintes: que se quebre a ordem jurídica, ou seja, que não se convoque a eleição presidencial que deveria se realizar em até 30 dias da morte do presidente; que setores armados e mais radicais do chavismo recorram à força física contra manifestantes ou líderes oposicionistas; que, durante essa fase de luto e incerteza institucional, e aproveitando-se da ocorrência de manifestações oposicionistas mais intensas, o governo atente contra as liberdades individuais que ainda restam no país.

Dois fatos, no entanto, são certos: a oposição não reúne forças para vencer um herdeiro do chavismo — possivelmente, o vice-presidente Nicolás Maduro; e esses herdeiros tentarão se beneficiar do enorme apelo emocional causado pela morte do comandante. Ao invés de caminhar para um ambiente de maior tolerância e objetividade, a política venezuelana tenderá a manter-se no terreno da mitologia, em que prevalecem a manipulação de símbolos, de eventos históricos e de dados da realidade objetiva. Também parece certa a piora das precárias condições econômicas e sociais legadas por Chávez (inflação, escassez de alimentos, criminalidade), o que, nesse momento de incerteza política, pode servir de pretexto para um aprendiz de caudilho.
Parece-me infundada, portanto, qualquer expectativa de que a morte de Chávez crie a possibilidade de refundação da ordem política venezuelana em bases mais democráticas e socialmente includentes. Quem viver verá!

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