Repórter Nordeste

Células-tronco: desafio científico

Felipe Lima


Gazeta do Povo

Há quase quatro anos, em 28 de maio de 2008, o Supremo Tribunal Federal colocava um fim a três anos de debate a respeito do uso de células-tronco embrionárias (CTE) para pesquisa. Naquele dia, a mais alta corte do país considerou constitucional o artigo 5º da Lei de Biossegurança, que regulamentava a atividade e havia sido questionado em 2005 pela Procuradoria-Geral da República. A decisão, no entanto, não encerrou o debate científico e ético, que continua a ser travado.

Embora, legalmente, a manipulação dessa linhagem de células seja permitida, na prática poucos pesquisadores aceitam o desafio de estudá-las. Hoje, quase todos os cientistas preferem, por várias questões, focar-se em células-tronco adultas. No país, há quatro grupos que trabalham com as CTE, contra dezenas que, de alguma forma, manipulam e até já realizam testes clínicos com células adultas, que têm apresentado resultados mais rápidos e mensuráveis.

Diferenças

Células-tronco adultas e embrionárias apresentam grande capacidade de diferenciação e multiplicação. Conheça mais sobre elas:

Embrionárias – são pluripotentes, com alta capacidade de diferenciação, que podem se transformar em qualquer tipo de tecido ou órgão, menos em anexos embrionários e placenta. Para manipulá-las, é preciso destruir o embrião.

Adultas – são multipotentes, com capacidade mais reduzida de diferenciação. Podem se transformar em menos órgãos e tecidos. Encontram-se nos órgãos, parede do cordão umbilical, medula óssea e alguns tipos de tecido.

Inovação

Célula intermediária é esperança de solução para o dilema.

Enquanto a comunidade científica e os leigos debatem os riscos e os benefícios de um e outro tipo de linhagem de células-tronco – adultas ou embrionárias –, um terceiro tipo, chamado de células pluripotentes induzidas (iPS, da sigla do inglês), começa a chamar a atenção e já é visto como a melhor alternativa para aliar os benefícios das embrionárias (que têm maior poder de diferenciação) aos das adultas (que não destroem embriões). A primeira linhagem dessas células foi cultivada no país em 2009 por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Como explica a neurocientista da UFRJ Cláudia Batista, é possível induzir células adultas multipotentes (com poder de diferenciação mais limitado) a virarem células pluripotentes, característica inata das embrionárias, que têm a capacidade de se transformar em quase qualquer tecido ou órgão (menos anexos embrionários e placenta). Neste caso, a médio prazo, ela considera que as pesquisas com embrionárias não serão mais justificáveis.

O procedimento passa por retirar uma célula da pele e injetar no mínimo quatro genes com características embrionárias que a induzam a se comportar como pluripotente. Ainda não foram feitos estudos com humanos, apenas com camundongos, e as iPS também podem gerar tumores, com a diferença de que são mais facilmente controláveis. “Como são menos genes envolvidos, o controle é maior. Acredito que esse é o caminho mais ético e também o mais promissor.”

O coordenador do Centro de Terapia Celular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Paulo Brofman, também avalia que o futuro das pesquisas está nas iPC. Um dos maiores especialistas em terapia celular no estado, ele, que é contra a pesquisa com embrionárias, diz que elas deram importante contribuição para o conhecimento da embriogênese e para o estudo sobre o efeito de drogas nos tecidos, mas que a Ciência deve aproveitar a oportunidade oferecida pelas iPC e investir mais na área.

O grande “entrave técnico” que impede maior adesão da comunidade científica a essa linha de pesquisa pode ser explicado pela própria natureza das células-tronco embrionárias. Por seu grande poder de diferenciação e multiplicação, elas acabam, como “efeito colateral”, desenvolvendo uma capacidade que assusta os cientistas: a de gerar tumores. Durante a multiplicação desenfreada das células em laboratório, é comum ocorrerem mutações no DNA que levam à geração de tecidos neoplásicos, resultando em câncer.

“Durante essa diferenciação, que ainda não se sabe como controlar, pode surgir tanto um órgão ou um tecido quanto um tumor, o que demonstra que esse tipo de terapia celular não é seguro”, explica a pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ângela Cristina Malheiros Luzo. Esse comportamento, de acordo com ela, não é encontrado entre células adultas, o que faz com que muitas pesquisas nessa área já estejam em fase de testes com humanos.

Rejeição

Outro obstáculo, apontado pela microbiologista da Universidade de Brasília (UnB) Lenise Garcia, é a rejeição que o tecido ou órgão gerados pelas CTE podem sofrer pelo corpo, o que não ocorre em relação às adultas, provenientes do próprio paciente. Além, como aponta Lenise, da questão ética em si, que para grande parte das pessoas é algo inegociável, pois envolve vida, direito inviolável pela Constituição brasileira.

“[O embrião] possui todas as características de um ser humano, uma vez que foi gerado por um homem e uma mulher, e tem o próprio genoma, original e irrepetível”, diz ela, que defende a interrupção das pesquisas com as embrionárias. “Além de antiética, ela é desnecessária, pois temos alternativas. Há cerca de 80 doenças para as quais já há testes clínicos [com adultas] sendo realizados.”

Estudos com embrião ainda são raros

Atualmente, no Brasil, é possível contar nos dedos o número de pesquisadores que trabalham com linhagens de células-tronco embrionárias (CTE). Um deles é a geneticista carioca e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Lygia da Veiga Pereira. À frente do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE) da instituição, ela iniciou a vida acadêmica nos Estados Unidos em 1993, trabalha na USP desde 1995 e é uma defensora ferrenha desse tipo de pesquisa, na qual é pioneira.

Ao ser indagada sobre o “calcanhar de Aquiles” das células que estuda – a capacidade de se transformarem em tumores –, Lygia responde que esse não é um motivo para desacreditar no potencial das CTE nem para acabar com as pesquisas. “As pessoas mascaram argumentos religiosos com essas bobagens”, diz. “Os tumores realmente são um problema, mas estamos estudando como controlar esse aspecto. Uma coisa é exigir testes rigorosos em animais antes de testar em humanos; com isso eu concordo. Outra coisa é tentar invalidar pesquisas sérias. As dificuldades não podem virar contra-argumento.”

A pesquisadora diz que é injusto comparar o histórico da pesquisa com células-tronco adultas, que existe desde os anos 50, com a das embrionárias, que se iniciou em 1998, com o objetivo de dizer que a segunda até agora não gerou resultados. “Nem um nem outro [tipo de pesquisa] gerou tratamento de fato. Mas esse ‘campeonato’ para ver qual é melhor é infrutífero, não leva a nada e quem perde é a Ciência.”

Ela cita que, mesmo em pouco tempo de estudo com CTE, três pesquisas já passaram para a fase de testes clínicos (em grupos controlados de pacientes) e não apresentaram tumores. Os estudos foram feitos nos EUA e na Inglaterra. Em um deles, comandado pela empresa americana Advanced Cell Technology, mulheres vítimas de degeneração macular (que causa cegueira) voltaram a enxergar e não desenvolveram tumores. Ainda é necessário acompanhá-las por mais tempo (por anos), mas os resultados com animais foram promissores, segundo Lygia. Em testes com 2 mil camundongos, nenhum apresentou tumor.

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