Repórter Nordeste

Capital e trabalho unidos

Gaudêncio Torquato -Estadão

Em  10 de fevereiro de 1979, Luiz Inácio, o sindicalista, ao contemplar a  galera nas arquibancadas e gerais do Estádio do Morumbi, teve um estalo:  fazer uma assembleia-geral de trabalhadores num campo de futebol.  Assistia, ao lado de companheiros, a uma partida entre Corinthians e  Ponte Preta pelo Campeonato Paulista – 2 x 0 para o Timão.

Março  do mesmo ano, 80 mil metalúrgicos em greve acorreram ao gramado do  Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, para ouvir o líder,  sem microfone, gritar refrãos que a massa repetia. Os trabalhadores  queriam 34,1% de aumento para repor as perdas salariais. Velhos e  doloridos tempos.

Surfando nas ondas de sofrimento e alegria  proporcionadas pelo seu time do coração, e depois de décadas de tenaz  esforço para organizar o movimento sindical e ingressar no caminho da  política, Lula alcançou os píncaros da glória. Galgou ao mais alto posto  da Nação, o de presidente da República, de onde se retirou, após oito  anos, sob o reconhecimento de que seu governo acelerou a dinâmica social  e deu rumo seguro à economia. Novos tempos.

A folhinha registra  fevereiro de 2012. Atento ao cenário institucional, o ex-presidente fez a  conta: entre o fevereiro de ontem e o de hoje, 33 anos se passaram.

Por que esse registro, cheio de simbolismos?

Porque  na imponente sede da Avenida Paulista que abriga a Fiesp, onde Lula  começou a praticar as artes da locução e da negociação, as maiores  centrais sindicais – entre elas a CUT, entidade que criou para ser o  braço sindical do seu partido, o PT – e empresários dos mais diversos  segmentos da indústria praticaram, na semana passada, uma liturgia em  nada semelhante à que ele comandava em tempos idos. Ali, representantes  de trabalhadores e patrões exercitaram um ritual entoando o mantra:  “Nesta causa, estamos unidos; todos por um, um por todos”. O jogo da  união momentânea – até porque seria ingênuo supor que as peças daquele  tabuleiro nunca mais litigarão – tem nome: desindustrialização. Que se  traduz pela perda relativa do emprego e do valor adicionado da  indústria. Fundamentos explicam-na, entre eles o forte crescimento da  produtividade no setor industrial em comparação com os demais, fator que  acarreta queda nos preços das manufaturas e a consequente redução da  participação da indústria no valor agregado e no emprego total.

O  estiolamento das cadeias produtivas ocorre desde a década de 90, na  esteira da política macroeconômica. De lá para cá milhares de postos de  trabalho foram fechados por aqui. O painel não deixa dúvidas: se a  indústria manufatureira registrava participação no PIB de 27,2% em 1985,  esse índice despencou para 15,8% em 2010. A queda do emprego na  indústria entre setembro de 1985 e setembro de 2010 foi de 28%, já a  participação dos manufaturados na pauta de exportações baixou de 55% em  2005 para 39,4% em 2010. O rosário de lembranças registra um passado em  que a pauta de exportações abrigava aviões, automóveis, confecções,  aparelhos, etc. Hoje tais itens são marginais. Mas a pauta de  importações engorda a olhos vistos. Em 2003 o coeficiente de importação  era de 12,5%; no segundo trimestre do ano passado, 22,9%.

Não por  acaso, Paulo Skaf, o anfitrião do encontro de trabalhadores e  empresários na Fiesp, pinçou, no meio das estatísticas, o dado que calou  fundo: de cada quatro produtos consumidos hoje no País, um é importado.  Fechando o pacote de perdas, o presidente do Grupo Marcopolo, a maior  fabricante brasileira de carroceria de ônibus, José Antônio Fernandes  Martins, fez o desabafo: “Meu custo de produção na Índia é de R$ 14 por  hora; no Brasil, R$ 52”. Conclusão: o Brasil apresenta-se como a  alternativa menos confortável entre os sete países que abrigam o grupo,  fruto dos males que afligem a indústria: concorrência predatória de  outros países, câmbio flutuante, alta taxa de juros, pesada carga  tributária e logística “podre”. A peroração, recheada de mágoas e  decepção com o governo, ganhou força com os adjetivos das centrais  sindicais, que acenam com a mobilização de massas nos Estados até o mês  de maio.

O que esperam o capital e o trabalho depois da missa pela  integração de propósitos? Que o governo encontre mecanismos para fazer  face ao esvaziamento das fábricas, permitir às empresas enfrentar o  tsunami das importações e incentivar a política de exportação de  manufaturas. Talvez por não ter o que oferecer, o ministro do  Desenvolvimento, Fernando Pimentel, decidiu não comparecer ao conclave.  Seria tarefa complexa comprometer-se com ajustes na política que se  adota há duas décadas, centrada na taxa de câmbio sobrevalorizada, que  reduz drasticamente as exportações de manufaturados e propicia intenso  processo de substituição de produtos domésticos por importados.

O  fato é que qualquer mexida no caldo econômico não pode deixar de  considerar a moldura das economias contemporâneas, sob a qual se  expandem fenômenos como a internacionalização das redes produtivas, a  mudança na forma de gestão das empresas, a expansão do sindicalismo de  classes médias, o fortalecimento do agronegócio ou a nova divisão  internacional do trabalho. O painel industrial mudou: tradicionais polos  de produção se esvaziam, enfraquecendo cadeias como as de siderurgia, a  têxtil, de vestuário, de estaleiros, etc.

O fecho da história de  arrefecimento da indústria mostra as curvas do tempo. A classe  trabalhadora ganhou impulso na expansão do chão de fábrica. Agora  definha pelo estreitamento das plantas industriais. A greve era,  outrora, a arma dos trabalhadores para abrir negociações. Hoje  trabalhadores procuram empresários para dialogar. Ontem a turba  desfilava na Paulista apontando seu aríete contra a pirâmide da  indústria, a Fiesp. Hoje centrais sindicais fazem passeata de mãos dadas  com os industriais. Antigos adversários se unem. Cena incrível, porém  verdadeira. Capital e trabalho comendo no mesmo prato.

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