Anti-Heróis Heróicos

(Patrícia C Schmid)
Cavalcanti Patricia

Eu estou exausta. O plantão foi muito intenso. Muitos acidentes de carro, muita gente ferida. Vou precisar relaxar quando chegar em casa.

Vou ver um filme leve com a Juliana. Ela tem só três anos, mas adora ver filmes e anda tão grudada comigo desde que eu e o pai dela nos separamos…

Espero, também, que o João me ligue. Foi tão bom o nosso encontro. Tomara que ele não seja mais um a sumir.
Ai, que banho bom, estava realmente precisando.

E agora, o que fazer para o jantar?

Essa vida de trabalhar tanto e não ter tempo para nada está me cansando demais. Não consegui passar no mercado, tem nada em casa… Também não fiz as unhas, estou horrorosa. Vou pedir uma pizza, nada saudável, mas a Juliana adora.

Bem, não posso seguir tão alienada, preciso ler as notícias, antes de ver o filme comendo pizza com a Ju. Que notícia é essa? “OMS divulga dados alarmantes de doença causada por um novo vírus com alto poder de letalidade.

Declarada pandemia, número de países afetados triplicou nas últimas semanas”. Caramba, preciso acompanhar as notícias com mais regularidade. Deixa eu colocar um alarme no celular para me lembrar de ler tudo sobre isso.

E o João não ligou… Queria tanto que ele fosse diferente dos outros, mas vida que segue.
Juliana está adorando o filme e a pizza, isso vale o dia.

Aí, vou domir já, já.

Os dias passaram tão rápido! Ambulatório, mercado, brigas com o pai da Juliana, João ligou, fomos tomar um chopp, noite ótima e já chegou dia do plantão de novo. Força, criatura!

O clima está estranho hoje, as pessoas estão tensas. O que está acontecendo? Que casos são esses? Febre, tosse, dificuldade para respirar, anosmia e ageusia. Serão casos contaminados pelo novo vírus? Por isso está todo mundo tenso. Vou ter que estudar essa doença. Caramba, eu preciso estudar sobre isso hoje. Será que minha mãe fica com a Ju? Vou ligar para ela porque com o pai não posso contar mesmo.

O quê? Mais três casos com os mesmos sintomas. Estou indo, tem uma paciente que vai precisar intubar. Gente, que loucura e eu reclamando do outro plantão.

Nossa, que coisa mais grave. A taxa de letalidade do vírus num país asiático está em 4%. E há quem questione a gravidade, atribuindo os sintomas a uma gripe. O que eu tratei hoje não teve nada a ver com gripe. Vou precisar exigir EPI, o nível de contágio é muito alto. Vou estudar tudo sobre o assunto, estou até animada, fazia tempo que achava o meu trabalho sem novidades, agora vou poder me atualizar, exercer a medicina como amo, vou salvar vidas.

O tempo está correndo, que dia é hoje? Até esqueci. Não li ainda as notícias sobre o vírus.

O quê? Já estamos com 87.187 casos infectados e 6.006 mortes. Força, criatura. O plantão amanhã vai ser punk.

Como dói o meu rosto e que vontade de ir ao banheiro, mas não posso. Se tirar esse EPI eu não vou ter outro para colocar. No próximo plantão eu virei de fralda geriátrica, ninguém precisa saber. Que bom que a Dona Dolores já está respirando sem aparelhos. Foi tão bonito ver seus olhos brilhando de novo. Ela me pediu para saber do marido dela, tenho que lembrar de ver isso.

Ai… preciso pensar também em como proteger a Ju e o João. Estou evitando pensar nisso, mas os casos estão aumentando e o risco de eu contaminar os dois é muito alto. Hoje à noite eu decido isso. Vou ficar devastada, mas terei que pedir para aquele imprestável do pai da Ju ficar com ela. Com minha mãe não dá, ela é idosa e é grupo de risco.

E o João, eu vou ter que conversar com ele. Foca, mulher, foca que tem mais um caso para intubar, dez para mudar a prescrição de acordo com o novo protocolo e mais os casos novos para avaliar. Força, criatura!

Que saudade da Ju, meu Deus. Muito ruim chegar em casa sem ela. Chamada de vídeo ajuda, mas sinto tanta falta das suas mãozinhas me abraçando na chegada do trabalho. Pelo menos o pai está cuidando bem dela, acho que isso tudo fez ele repensar a sua paternidade.

Saudades imensas do João. Estava tudo começando a ficar tão bom entre nós e agora essa distância toda. Estar longe sem querer dá uma dimensão tão real à realidade. Faz a realidade mais pesada.

E eu passando por tudo isso e vendo tanta gente na rua, quando a única coisa que pode controlar esse vírus até o momento é o isolamento social. Acho que estou ficando mal, sinto-me tão sem energia, mas eu não posso deprimir… Caramba, que saco, por que eu não posso deprimir? Estou tão irritada com essa história dos profissionais de saúde serem chamados de heróis. Coloca a gente numa posição sobre humana, acho que por isso me sinto tão mal de estar mal. Eu não sou heroína, cacete, sou gente e sofro também. Estou com medo de morrer, sozinha no apartamento, medo de perder o João e com tanta, tanta saudade da Ju. Tem horas que penso em parar a medicina, será que vale a pena isso tudo?

Dona Dolores morreu. Poxa, a Dona Dolores tão linda, doce, me contava tantas histórias e parecia com a minha avó.
Mais um sábado de solidão, pelo menos não tem plantão. Vou parar de ver notícias. Já estamos com 590.485 casos e mais de 30 mil mortes. Preciso cuidar de mim. Vou desconectar. Tem uma página de contos de uns amigos da Sara. Ela me mandou recomendando a leitura. Vou fazer isso…

Tem muita gente dizendo que a arte está sendo tudo nesse momento e estão com razão. Ler os contos me fez bem.

Aquele Amor em Código Binário diz algo tão importante que vou guardar para suportar a ausência do João. Vou mostrar para ele: “Amar, esperar pelo amor, era um jeito de sobreviver no coração do caos. Era sobretudo um ato de resistência”. Talvez o nosso amor consiga atravessar tudo isso; não sabíamos que estávamos sendo tão importantes um para o outro até isso acontecer. E aquele outro conto sobre O Paciente Favorito? Tão bacana, tem razão. Dona Dolores era minha paciente favorita e todo médico tem o seu sim. E o conto Memórias para Resistir? Esse me fez reconectar comigo. Memória descrita como resistência e lembrei-me de mim, menina, escolhendo a medicina, meus sonhos, ideais, acreditando numa prática humanizada, mesmo em UTI com tantos aparelhos e protocolos. Vou agradecer à Sara por me indicar esses contos.

Amanhã tem plantão e eu vou melhor, ainda triste, mas melhor… Sabendo que não sou heroína, mas apenas uma mulher médica fazendo o seu melhor e com direito de sofrer. Não vou desistir dos sonhos da menina que eu um dia fui. E outras Dona Dolores virão… Vou dormir!

*** PROJETO CONTOS DE RESISTÊNCIA
Edmar Oliveira, Fernando Tenório, Manoel Olavo e Patrícia Schmid lançam aqui o projeto ‘Contos de Resistência’.

Os contos aqui publicados serão compilados em um livro no futuro.

Sim, no futuro, pois para atravessarmos esse momento precisamos acreditar no futuro e os ‘Contos de Resistência’ serão a nossa forma de embalar a quarentena e reforçar nossas resiliências.

Os autores publicarão dois contos por semana Desejamos contribuir para resgatar e reforçar a resistência de cada um de nós, através da literatura.

Uma resposta

  1. Sem palavras … Obrigada pela reflexão e por sentir que não estou sozinha nesse barco desgovernado .

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