Ana Cláudia Laurindo: Mercado de Amores

Estamos de tal modo engrenados na maquinaria do sistema, que nossos calendários íntimos seguem as regras que este abstrato mandatário gera

Ana Cláudia Laurindo- Cientista Social

Estipular um tempo para a solidariedade extremamente vinculada ao consumo, não deveria causar em nós algum espanto? Não causa, pois que a indiferença já está na ordem do dia, o uso do pensamento volta-se às necessidades de produzir e reproduzir, para ao final recebermos o repouso ou a recompensa.

Estamos de tal modo engrenados na maquinaria do sistema, que nossos calendários íntimos seguem as regras que este abstrato mandatário gera.

Tem tempo para a entrega profana, cada vez mais ruidosa e tóxica no carnaval; para logo depois rezar e penar com a crucificação, com vinho e chocolate, mais coelhinhos de pelúcia em lindas cestas de presentes. Extenso calendário divide nossos sentimentos ao longo de cada ano civil, tudo dentro de um perfeito rigor cronológico, no qual não faltará a expressão de amor através do presente às mães, aos pais e também às crianças, embora já tenha sido acrescentada a data dos avós.

Perfeita distribuição do tempo de amar comprando!

Contudo, resta um vácuo entre as datas. O que fazemos quando parece não ser tempo de amar ninguém?

Se pelo menos nesses intervalos pudéssemos parar de comprar e usar o senso crítico, perceber o que é feito com quem não consegue consumir, as angústias que são geradas em quem não consegue entrar no circuito do vale o quanto paga!

Talvez não precisemos do frenesi do Natal, Carnaval ou Páscoa para sentir a manipulação comercial que nos movimenta, que elabora os conceitos que acreditamos ter a respeito de nós mesmos e dos outros.

Enquanto esse psicotrópico dominar nossas cabeças, seremos levados pelo redemoinho de vento e folhas, que ao final, deixa apenas um rastro de poeira em nossas relações. Continuaremos cobrando o que não oferecemos, como respeito ao outro incondicionalmente.

Analisando essa quase alegria de mais trabalhar para mais gastar, percebemos a remodelagem da rosto humano em nossa sociedade. Cada mais vez mais ahistórico, sem identidade política ou cultural. O que caracteriza cada um é o assessório da moda. Onde ficaram nossos ancestrais e as heranças que nos deixaram?

Já não queremos falar sequer a nossa própria língua. Uma onda de negação em série daquilo que somos nos engole, porque somos cada vez mais o que o mercado desenha.

Nosso lazer, nosso amor, nossa sexualidade, tudo enfim, sente o assédio dessa onda, que por sua vez deriva daquela onda maior conhecida como neoliberalismo, avançando e crescendo sobre nossa imobilidade, dispersão e isolamento social.

Hoje não consigo mais escrever as mensagens de outrora, falando apenas dos encantamentos do Natal. Antes, gostaria de sacolejar o debate para mapearmos juntos o que ainda nos é possível salvar na esperança de ver sobreviver o que há melhor, ou de mais humano, em cada um de nós, os compradores de amor deste século.

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