A tragédia de todos nós

Hugo Caporal –
(11.428 OAB-AL- Mestre em Direito. Professor e advogado especialista em prevenção, defesa e contenção de crises nas áreas de compliance, administrativo/governança, LGPD e criminal. Consultor e pesquisador na construção e interpretação do arcabouço jurídico, especialmente em questões constitucionais e de direito público em geral)

Nessa última semana, Santa Maria-RS reabriu a ferida que nunca cicatrizou. Em verdade, 242 duas feridas fatais e mais de 600 que serão lembradas por seus portadores para sempre. O Brasil, que chorou junto a morte de tantos jovens, vê o incêndio ocorrido em 2013 continuar queimar.

O julgamento da Boate Kiss traz sensações inexplicáveis. Os depoimentos são fortes, as imagens e reações pesadíssimas. No meio de tudo, há um dilema jurídico: os réus assumiram o risco? Houve dolo eventual?

Opinar sem conhecer as minúcias do processo é um tanto quanto temerário. Porém, ao menos quanto a questão fática, os detalhes são amplamente conhecidos, o que nos permite algum juízo de valor.

E me permitam dar a resposta antes da explicação: pelo próprio contexto lógico dos fatos, não é razoável pensar que alguém assumiu o risco. Que alguém, deliberadamente, previu a possibilidade, ponderou e pensou “dane-se”. Muito mais crível terem pensado que “usamos fogos sempre, isso nunca vai acontecer”. É irresponsável? É imprudente? Com certeza, mas se respondemos sim a qualquer uma dessas perguntas então estamos afirmando que há CULPA e não DOLO.

O art. 18 do Código Penal é irretocável ao comandar que:

Art. 18 – Diz-se o crime:
Crime doloso: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
Crime culposo: II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Uma confusão que normalmente as pessoas cometem é dizer: “foi irresponsável, então assumiu o risco”. Ao menos para o direito penal, são situações contraditórias que não sobrevivem na mesma frase. Ou eu sou irresponsável, não previ o resultado ou mesmo previ e acreditei que ele não iria acontecer, ou eu não me importo com as consequências da minha atitude e assumo o seu desfecho.

Deixe-me dar alguns exemplos de dolo eventual:
i) o primeiro é teórico, vem dos livros. Eu coloco uma bomba na boate com a intenção de explodi-la. É possível prever que pessoas desconhecidas vão ser atingidas, mas eu não me importo, quero a destruição do lugar, portanto, assumi o risco sobre aquelas vítimas.
Mas tudo bem, você pode me questionar que esse exemplo é imaginário demais, então vamos a um mais prático:
ii) condutor que acelera propositalmente o carro contra ciclistas na intenção de “atravessar” o grupo. Veja que o objetivo primário da conduta era ultrapassar, para isto pouco importa se vai atingir, lesionar ou matar um ciclista, assumindo assim o risco.

Voltando a boate, era costume da banda Gurizada Fandangueira usar fogos de artifício em seus shows. Defender que o ex-vocalista, atualmente sendo julgado, assumiu o risco ao realizar um show com fogos, é dizer que ele não se importava com a possível morte do irmão que ali estava.

Mais ainda, para firmar a tese de dolo eventual temos que imaginar que um dos sócios concordava em por risco a sua esposa grávida que estava dentro da boate na noite fatídica.

Não é razoável. Por isto mesmo, este processo nunca poderia ter ido pra júri, pois a competência deste é de crimes dolosos contra a vida (Constituição Federal de 1988, art. 5º, XXXVIII, letra “d”). Infelizmente o STJ, reformando a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, decidiu submeter os réus a júri popular.

E porque temos essa discussão entre DOLO e CULPA?
O debate só existe porque, em regra, crime culposo no Brasil não dá cadeia, não importa a quantidade de pena aplicada (um pequeno segredo dos criminalistas que reside no inciso III, art. 44, do Código Penal). A pena é substituída por restritiva de direito, que em resumo, são limitações sociais como prestação de serviço a comunidade, interdição temporária de direito e limitação de fim de semana (art. 43 do Código Penal).

O mesmo se aplica para quem bebe, dirige e mata. É irresponsabilidade, é imprudência, portanto, é culpa. Como dizer a uma mãe que perdeu seu filho para uma conduta irresponsável que o autor não será preso? Que apenas ele terá que pagar uma pena pecuniária e ficar em casa por algum tempo? Por isso o Ministério Público, equivocadamente, força a tese de dolo eventual.

Só que justiça não é justiçamento. Se a Lei está errada, mudamos. Não é com jeitinho ou forçação de barra que resolveremos os problemas jurídicos da sociedade.

Para início, temos que ter humildade de entender que o inciso III do art. 44 não mais atende os anseios sociais e atinge sua finalidade. Segundo o já citado artigo 18 do CP, há três tipos de crimes culposos: i) imprudentes; ii) negligentes e; iii) imperitos (que é, resumidamente, o erro na profissão). Entendo que, ao menos para os dois primeiros, caberia algum tipo de revisão legislativa justamente para que não aflore o sentimento de impunidade e a confiança nas instituições não seja abalada.

A teoria tridimensional do direito, de Miguel Reale, mostra o caminho ao trazer a fórmula: a sucessão de fato (sociologismo) → demanda valores (moralismo) → cria-se a norma protetora (normativismo). O caminho seguro para criação/modificação de direitos e deveres passa pelo Congresso Nacional, com amplo debate social.

Por fim, lembro que o júri é principal porta de democracia do Judiciário. Não há outra forma tão pura e tão direta de participação popular na tomada de decisões no poder mais fechado da república. Reside neste autor, portanto, um defensor ferrenho deste instituto.
Porém, ao tratar somente de crimes dolosos contra a vida, mesmo quando a acusação vence e consegue a condenação, alguém já perdeu. Perdeu uma filha, um pai ou um irmão.

Quando a defesa não triunfa, pode-se, igualmente, estar perdendo um filho, uma mãe ou um amigo para a condenação injusta, botando um inocente por anos no cárcere. Já sua vitória pode trazer descrença, sensação de impunidade e da própria injustiça.

Para as partes podem haver vitoriosos, mas para a sociedade não há o que se comemorar em resultado de um júri.

Condenação ou absolvição são face opostas da dolorosa moeda que precisa existir e de uma decisão que a sociedade sempre precisará tomar, mas nunca deverá festejá-la.

Seja qual for a decisão do Conselho de Sentença do julgamento da Boate Kiss, o tardio desfecho já entrou para galeria dos casos que sangram a nossa pátria mãe gentil.

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