A revanche dos ingênuos

Uma das pedras angulares do direito internacional, a reciprocidade decorre de razão e de equidade, como medida a não ser aplicada na forma de mera retaliação

Jorge Fontoura- Doutor em direito internacional, professor titular do Instituto Rio Branco e membro do Tribunal Permanente do Mercosul- Correio Braziliense

Grandes  jornais e notáveis colunistas têm incensado a recente decisão de  aplicarem-se a espanhóis as mesmas estapafúrdias normas e constrições  que se têm adotado contra brasileiros no Aeroporto de Barajas, em Madri.  Arvora-se a bandeira da reciprocidade, a repetir-se erro cometido no  primeiro governo Lula, quando passamos a fotografar norte-americanos que  desembarcavam no país para fazer-lhes cara feia e lavar a honra ferida  da pátria. Passados os anos, após desgaste político e investimentos  vultosos em equipamento e pessoal, o que resta são centenas de milhares  de fotos de gringos inócuos, abandonadas em algum lugar real ou virtual  de aeroportos caóticos, típicos de países desordenados que já poderíamos  não ser.

Assim como à época dos americanos, os espanhóis têm  ignorado reclamações e protestos diplomáticos. Alegam que a truculência  de sua polícia de fronteira se deve ao rigor das normas  comunitário-europeias de imigração, a desconhecer que os desmandos têm  sido perpetrados mormente na Espanha. É certo que o tratamento  dispensado a estrangeiros é matéria de domínio interno, reservada à  discrição dos governos. Cada país aplica a norma que estimar correta,  desde que com respeito ao standard de dignidade que se deve à pessoa  humana. Aqui, tem-se valor jurídico absoluto, norma plena de direito  internacional escrito, a constituir obrigação jurídica inarredável.  Claro que há desvios e mesmo no Brasil já tivemos fatos lamentáveis, a  exemplo de decreto que na República Velha estipulava como passíveis de  expulsão, de forma textual, “estrangeiros vagabundos, aleijados, ciganos  e congêneres”.

Uma das pedras angulares do direito internacional,  a reciprocidade decorre de razão e de equidade, como medida a não ser  aplicada na forma de mera retaliação. Conforma atitude facultativa,  opção de conduta, reação proporcional à injusta ação ou omissão, com o  cobro de preservar ou de restabelecer a boa relação entre as partes. A  ausência de limites precisos entre o que se define como dever jurídico  ou como obrigação moral, comum nas relações internacionais, faz do  instituto ferramenta versátil e de particular utilidade, a ser sempre  sopesada em face da conveniência e da oportunidade de sua aplicação. No  caso presente, a invocação da reciprocidade é imprópria e contrária a  interesses nacionais relevantes.

Hoje, apesar da violência urbana  que nos assola, a não excluir turistas e viajantes, bem como da péssima  imagem que produzimos, na televisão e no cinema de clichês deploráveis,  no imaginário internacional o Brasil é algo de bom e de desejável. Se  quisermos posar de país enfezado e truculento como tem sido a Espanha,  comprometeremos um de nossos maiores ativos, a simpatia e a tolerância  brasileiras, para deixarmos de ser o homem cordial que naturalmente nos  habita. Também devemos considerar que polícias de aeroportos não têm  vontade própria e agem ao humor e ao sabor de seus governos. Ora, se o  governo espanhol acaba de mudar radicalmente, com novo primeiro-ministro  e novo gabinete, e se era a polícia do pulverizado Zapatero a que nos  perseguia, talvez estejamos prestes a dar na hora errada o troco  impróprio.

Apesar de seus desgovernos, o Reino da Espanha é  formidável democracia e um dos países que mais se modernizaram em breve  espaço de tempo. Parceiro estratégico do Brasil, que já foi espanhol por  60 anos, entre 1580 e 1640, os ibéricos têm grande presença em nossa  economia, com investimentos vultosos e consolidados. Agora, na  contingência de errarmos porque a Espanha errou, beiramos ao desatino,  com grandes danos que disso podem decorrer. Em verdade, do que valeria  confinar e segregar pessoas em nossos aeroportos antes de deportá-las de  forma duvidosa e quiçá em conflito com nossa própria Constituição? Por  certo, haveria sempre os que se sentiriam vingados por não entenderem  senão a forma primitiva da gestão de conflitos.

No entanto, os  prejuízos potenciais superariam em muito qualquer sensação de exercício  de poder aparente, sem que as verdadeiras vítimas fossem indenizadas ou  recebessem a devida reparação moral. Em face dos absurdos verificados,  seria desejável que, com a proteção e com a representação do Estado  brasileiro e de sua Advocacia-Geral, os que se viram atingidos em seus  direitos buscassem reparação na própria justiça espanhola, com  possibilidade de recurso à Corte Europeia de direitos humanos, que já  condenou governos por abusos semelhantes.

Afinal, fazer uso  civilizado do direito também em jurisdições externas é faculdade a todos  disponível, como atributo da modernidade e da globalização jurídica.  por último, para arrefecer os ânimos mais exaltados, nunca é demais  evocar o mexicano Otávio Paz em sua reflexão acerca da condição humana e  de suas vicissitudes: “Ser sábio é saber que não somos inocentes”. E,  por último, para arrefecer os ânimos mais exaltados, nunca é demais  evocar o mexicano Otávio Paz, em reflexão acerca da condição humana e de  suas vicissitudes: “Ser sábio é saber que não somos inocentes”.

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