A quem vencer Serra na prévia, nem as batatas

O projeto de Lula é audacioso e arriscado: depois de ter sido diagnosticado um câncer em sua laringe, local estratégico para o exercício de seu maior trunfo, o discurso, usou a desvantagem para retirar de cena a senadora e ex-prefeita Marta Suplicy e impor ao partido o noviço Fernando Haddad

José Nêumanne-O Globo

Apesar de ser o maior colégio eleitoral municipal  do País, a capital paulista nunca protagonizou eleições para a  Prefeitura que tivessem consequências nos pleitos imediatos para a  Presidência da República nem para o governo do Estado. Este ano,  contudo, o panorama parece ser bastante diferente: nos governos federal e  de Estados importantes como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e  Pernambuco, a aliança governista, sob o comando do Partido dos  Trabalhadores (PT), tem uma espinha entalada na garganta de seu projeto  de conquista do poder pelo voto popular: apesar de terem vencido as três  últimas eleições nacionais, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff  foram derrotados tanto na capital como no Estado de São Paulo. E, tendo  mudado de armas e bagagem para São Bernardo do Campo, onde elegeu para a  prefeitura seu sucessor na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos,  Luiz Marinho, o ex-presidente resolveu usar seu capital de popularidade  para começar o projeto de conquista do último bastião adversário, São  Paulo de Piratininga, pela eleição de um correligionário de confiança,  para, no passo seguinte, subir as colinas do Morumbi.

O projeto de  Lula é audacioso e arriscado: depois de ter sido diagnosticado um  câncer em sua laringe, local estratégico para o exercício de seu maior  trunfo, o discurso, usou a desvantagem para retirar de cena a senadora e  ex-prefeita Marta Suplicy e impor ao partido o noviço Fernando Haddad.  Assumiu tarefa hercúlea num desafio à lógica e à sensatez. Seu  ex-ministro da Educação, novo, bonito e sem rejeição que assuste, não é  conhecido, mas tem um passado capaz de condená-lo: as lambanças  cometidas pela burocracia que comandou na realização do Exame Nacional  do Ensino Médio (Enem), prato cheio para adversários no horário gratuito  dos partidos no rádio e na TV.

Afastados os pretendentes não  ungidos pelo chefão popularíssimo, Fernando Haddad não conseguiu até  agora tirar proveito das vantagens que seus adversários da oposição, os  tucanos em particular, lhe têm oferecido de mão beijada. Único no  palanque petista, ainda não se demonstrou capaz de ganhar terreno com o  tempo perdido na escolha do candidato do Partido da Social Democracia  Brasileira (PSDB) para domingo que vem, quando se realizará sua prévia.

Tudo  mudaria para melhor se Gilberto Kassab, do Partido Social Democrata  (PSD), tivesse, como chegou a anunciar, confirmado o apoio à chapa do  PT. Mas foi o anúncio que fez os ventos favoráveis ao projeto de Lula,  Dilma e Haddad mudarem de direção. Ao ensaiar seu surpreendente  movimento para a esquerda, o prefeito paulistano sentiu-se forçado a  deixar patente que apoiaria incondicionalmente o ex-governador José  Serra. Desde que o processo sucessório foi deflagrado em São Paulo, o  tucano nunca hesitou em se dizer fora da luta pela Prefeitura para  manter acesa a chama de sua ambição de enfrentar Dilma Rousseff na  eleição presidencial de 2014. Kassab acreditou nisso até o fim e, aí,  deu o pretexto para o recuo inesperado, mas que se tornou inexorável, de  Serra.

Num pleito difícil e disputado como será o deste ano no  maior município do País, só um louco abriria mão do apoio do prefeito,  que manda no PSD, ou seja, decidirá para que candidato irá o tempo  disponível para seu partido no horário gratuito no rádio e na televisão  (se o ganhar no Supremo) e trabalhará a máquina administrativa da  Prefeitura. Essa obviedade vem recheada com uma revelação: na entrevista  que deu na semana passada ao Valor Econômico, o secretário das Finanças  que Kassab herdou de Serra, Mauro Ricardo Costa, anunciou que este ano  os cofres paulistanos estão abarrotados para transformar a cidade num  canteiro de obras, reluzente e sólido trunfo de qualquer candidato em  cujo palanque o prefeito subir. Somente um político alienado deixaria de  considerar os efeitos que poderão produzir os planos habitacionais,  escolas e hospitais que forem construídos com as sobras de caixa da  Prefeitura, que o secretário sovina que virou estroina calcula entre R$  4,3 bilhões e R$ 6 bilhões.

Nem o governador paulista, Geraldo  Alckmin, de posse dos cordéis que manipulam o teatro de marionetes da  eleição municipal, se sentiria confortável em manter o pé atrás em  relação à candidatura de seu ex-chefe e sempre rival. Ao anunciar que o  único tucano que apoiará será Serra, Kassab escreveu o roteiro da  retirada de seu companheiro de chapa em 2004 de sua posição, que ele  imaginava irremovível, de se guardar para disputar com o senador e  ex-governador mineiro Aécio Neves a legenda preferencial contra a  presidente petista, daqui a três anos.

Dos quatro inscritos na  prévia marcada para o dia 4, os secretários estaduais Andrea Matarazzo e  Bruno Covas já apoiaram o ex-governador, empurrados pelo clamor do  óbvio ululante. A importância do pleito não comporta movimentos de  ambição ou vaidade. Até este texto ser escrito, contudo, outro  subordinado de Alckmin, o secretário José Aníbal, e o deputado Ricardo  Tripoli insistiam em enfrentar o ineludível. O pior que lhes pode  acontecer se mantiverem a teimosia até o fim será um deles vencer Serra  nas prévias. Pois, se isso ocorrer, fatalmente Kassab correrá para o  regaço de Dilma, Lula e Haddad, que o esperam ansiosamente; Alckmin  lavará as mãos da sorte de qualquer uma das candidaturas, de vez que  terá cumprido o seu dever de pedir que os pretendentes renunciassem em  nome não da disciplina nem dos interesses maiores do partido, mas do  apreço aos fatos; e Serra terá atendido ao apelo dos companheiros e  readquirirá autoridade moral para disputar o que sempre lhe interessou  mais: a convenção contra Aécio e a eleição contra o PT

Se ocorrer a  improvável vitória de um adversário de Serra nas prévias, seja Aníbal,  seja Tripoli, o malogro eleitoral não premiará nenhum dos dois sequer  com o saco de batatas que Machado de Assis dizia ser reservado aos  vencedores nas guerras tribais.

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