Para estudar as condições concretas que vivem as maiorias populares em Alagoas não dá para se abster da análise do cenário socioeconômico deste território, isto é, é evidente que todo e qualquer sujeito que vive em Alagoas terá de se reproduzir materialmente e a reprodução da vida está atrelada a organização da produção e da estrutura social que se desenvolve a partir desta. Ora, a despeito destas “condições concretas” a Psicologia alagoana não tem dado respostas satisfatórias desde estas “questões” e desde de quem as vive da maneira mais intensa e opressora. O cenário da Psicologia no Estado é de tamanho silêncio político que nem os “motivos” que surgem na discussão do “compromisso social” ou da “transformação social”, debate forte na Psicologia desde os anos 1980, aparecem com frequência. O que existe é conglomerado de conhecimento inerte, numa margem “clássica” e “tradicional” de reportórios teóricos e práticos que não dão respostas concretas a situações concretas da sociedade/comunidade que atua.
Logo, tamanha miséria do arcabouço científico e técnico na Psicologia do Estado segue a risca a docilidade necessária a reprodução dos cenários sociais típicos do atraso, da conservação e do total desinteresse pelos setores oprimidos. As consequências disso, bem como a sua razão de ser, já foi bem descrita, por exemplo, por Ignácio Martin-Baró quando se debruça sobre a Psicologia Latino-americana. Para ele, no compromisso de criar uma Psicologia da Libertação, precisamos libertar também a Psicologia e observa as inadequações imediatas de suas propostas práticas e teóricas. Algumas consequências podem ser vista em Alagoas e vou me arriscar a elencar algumas. Segue a análise:
- Mercado de trabalho
A realidade econômica do Estado impacta de maneira objetiva nas possibilidades de atuação dos psicólogos(as) bem como sua formação, desenvolvimento de habilidades e acesso a conteúdos específicos, formações e cursos complementares. A alternativa é buscar conteúdo e formação complementar fora, além de se submeter a trabalhos mal remunerados, sem vínculos legais, contratos temporários, cargos comissionados ou negociados a partir de práticas de clientelismo e apadrinhamento.
A literatura disponível sobre economia alagoana, bem como os dados da Secretaria do Planejamento, Gestão e Patrimônio de Alagoas (SEPLAG) (2016), indicam crescimento no setor de serviços, o que inclui os serviços de Psicologia privados e profissionais liberais no Estado, no entanto, o crescimento do setor de serviços não possui relação imediata com a quantidade de retorno financeiro do trabalho do psicólogo assim como a qualidade de suas condições de trabalho. Outro dado importante foi o levantamento feito pelo Conselho Regional de Psicologia da 15ª Região (CRP-15) (2020) com o objetivo de compreender a prática profissional do psicólogo alagoano durante a pandemia de COVID-19 e que indica forte presença de psicólogos nas políticas públicas, sobretudo no SUS.
Apesar das debilidades deste levantamento (conta com apenas 180 entrevistados) ainda assim é um documento oficial que se encontra no site do CRP-15 e possui uma amostra importante sobre a categoria. A questão fundamental neste levantamento é que a maioria dos psicólogos entrevistados não receberam treinamento específicos sobre a COVID-19, o que é bastante problemático neste contexto. O documento demonstra ainda a concentração de profissionais em cidades de médio e grande porte, ou seja, Maceió, Arapiraca e Palmeira dos Índios, podendo indicar que o processo de interiorização da Psicologia do Estado está acontecendo de maneira lenta, ou seguindo a tendência geral das características demográficas no Estado, sobretudo quando diz respeito ao êxodo rural e a procura de alternativas em cidades de maior dinamismo econômico. Como atuam os profissionais no interior? Quais são suas condições de trabalho? Não sabemos. O limites da formação tradicional em Psicologia dão conta das demandas de locais remotos, de população rural e acentuadamente pobre como a de Alagoas? Isso nos leva a segunda questão:
- Inadequação de práticas
Os limites idealistas e tecnicistas da formação tradicional em Psicologia não permite o acesso a realidade concreta dos sujeitos usuários dos serviços, caindo em posturas profissional meramente tecnicistas e na abstração e idealização do sujeito, desconsiderando conjuntura social e política, individualizando e naturalizando o fenômeno psicológico, dando ênfase a adaptação e normalização, caindo em atuações com pouca relevância social e mudanças qualitativas na sociedade/comunidade que atua. Isso também engloba a lacuna de práticas em comunidades tradicionais ou em contexto rural, práticas com grupos marginalizados e socialmente vulneráveis, pouca compreensão do elemento estrutural da pobreza e da desigualdade de acessos a bens e serviços no Estado, etc.
- Inadequação teórico-epistemológica
O sujeito real com suas necessidade concretas não é apreendido pelo arcabouço tradicional em Psicologia, e isso não acontece por vontade ou desejo dos psicólogos, mas pela inadequação da epistemologia tradicional da Psicologia, na estrutura de sua composição teórica. Desta maneira, a teoria idealiza e abstrai, ideologiza a relação entre sujeito e sociedade e o fratura na relação fundamental com a totalidade. A teoria não consegue alcançar o sujeito concreto pois não é o que se propõe a fazer desde o princípio. Isto é, rejeita o elemento dialético na compreensão do sujeito e da subjetividade, reitera oposições fundamentais entre indivíduo e grupo, indivíduo e sociedade, universaliza conceitos e desconsidera contexto histórico e dinamismo político, isso quando não dá uma ênfase a subjetividade em oposição a objetividade e subverte a lógica da ação política macroestrutural numa hipervalorização da “micropolítica” ou da libertação via “linguagem”, desconsiderando características materiais e objetivas da dominação social como produzidas por um sistema, isto é, o capitalismo.
- Conservadorismo político
A Psicologia que não se compreende na dinâmica da sociedade capitalista, submetida a ideologia da classe dominante e a reprodução da dominação social, esquece das potencialidades que se encontra no bojo de práticas críticas e emergentes em Psicologia. Isto é, não compreende a potência do próprio trabalho, não compreende que sua atuação e comprometimento profissional é político e por isso não tem como ser neutro. Não presta atenção em que direção está apontada a sua atenção profissional (apenas uma minoria rica, classe média e urbana) e não se atenta a própria situação profissional desde conquistas trabalhistas, postos de trabalho até remuneração.
- Não enxerga que precisa libertar-se
A falta de reconhecimento das próprias contradições, intolerâncias, idealismos e miséria não faz emergir um outro horizonte possível, isto é, a construção de uma caminho para uma superação e um salto qualitativo nos modelos teóricos e práticos da profissão. A falta de um projeto ético-político claro remete a estagnação, não engajamento, falta de organização política e profissional para protagonizar a própria luta.
- Fatalismo
Posturas apáticas, assujeitamento e não reconhecimento da própria existência política, aceitação da “coisa como sempre foi e sempre será”, normalização da situação profissional, individualização da responsabilidade de sua “carreira” e das poucas alternativas de trabalho desconsiderando a estagnação econômica do Estado e a forte concentração de renda e do poder político, não se revolta com a remuneração incipiente e péssimas condições de trabalho. A sensação inquietante de silêncio político, invisibilidade social, pouca relevância para a sociedade.
Saiba mais:
Conselho Regional de Psicologia da 15ª Região. (2020) Levantamento da atuação da(o) psicóloga(o) alagoana(o) durante a pandemia de COVID-19. Alagoas: autor. Recuperado de https://www.crp15.org.br/wp-content/uploads/2020/07/LEVANTAMENTO-DA-ATUAC%CC%A7A%CC%83O-DO-PSICO%CC%81LOGO-COVID-19-versa%CC%83o-FINAL.pdf.
Lopes, G. C. L. A. (2017, setembro) Estrutura produtiva de Alagoas: O movimento de especialização regressiva (1985-2010). Anais do VIII Seminário Internacional sobre Desenvolvimento Regional, Santa Cruz do Sul, RS, Brasil, 8, recuperado de https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidr/article/view/16846
Martin-Baró, I. (1996) O papel do Psicólogo. Estudos de Psicologia, 2(1), 7-27. Acesso em 22 de outubro de 2020, recuperado de https://www.scielo.br/pdf/epsic/v2n1/a02v2n1
Martin-Baró, I. (2006) Hacia una psicologia de la liberacion. Revista Eletrônica de Intervención Psicosocial Y Psicología Comunitaria, 1(2), p. 7-14.
Secretaria do Planejamento, Gestão e Patrimônio. (2016) Alagoas em números 2016. Alagoas: Autor. Recuperado de http://dados.al.gov.br/dataset/alagoas-em-numeros/resource/be78e8be-f439-4c81-9622-1397670e6948.