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A proposta de Cezar Peluso

Pedro Estevam Serrano – advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP, mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP

Há um intenso debate no mundo jurídico, de profundas repercussões para nossa sociedade, acerca da proposta do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Cezar Peluso, de alterar a forma pela qual se considera uma decisão judicial como transitada em julgado.

Pela proposta, a decisão judicial já seria definitiva em segunda instancia, podendo ser executada, e os recursos hoje enviados ao STF e o STJ (Superior Tribunal de Justiça) —extraordinários e especiais— seriam transformados em medidas rescisórias.

O objetivo da mudança é reduzir o tempo existente entre o início da ação e a aplicação da decisão jurisdicional, desafogar as instâncias superiores e diminuir a utilização das chamadas “chicanas jurídicas”, consequentemente, delimitando o espaço de protelação da aplicação da decisão da justiça.

Sem dúvida, são razões nobres e animadas pelo princípio de que só se pode falar em justiça quando há grande acesso às instituições e quando não há demora irrazoável na prestação jurisdicional. E, evidente, uma justiça lenta e com acúmulo de causas a julgar acaba se transformando em um Judiciário distante dos cidadãos e que tende a produzir decisões que alimentam a sensação de impunidade.

O site jurídico Última Instância informou em março deste ano o diagnóstico de Peluso sobre esses problemas, qual seja: “A causa principal dos atrasos dos processos no Brasil é a multiplicidade de recursos e, especificamente, o nosso sistema de quatro instâncias”.

A questão é polêmica e espinhosa. Se é verdade que a demora nos julgamentos atenta contra o sentido maior da própria justiça, havemos de sopesar a importância de se garantir todas as condições de ampla defesa e contraditório por parte dos réus e sua defesa. A busca de soluções para agilizar os julgamentos pode ter esse efeito colateral altamente nocivo, além de suscitar a criação de um ambiente em que o acusado se veja na urgência de correr para provar sua inocência —ao invés de recair ao acusador a necessidade de reunir provas para condenação do réu.

Não há que alimentar dúvidas quanto às boas intenções e práticas para melhorar o funcionamento do Judiciário por parte do presidente do STF —aliás, não é de hoje que reputo a atual composição da mais alta Corte do país como uma das mais sensíveis e equilibradas em relação aos princípios democráticos e ao respeito aos direitos humanos em toda historia daquela Corte. Mas uma mudança de tal magnitude exige que olhemos as questões por todos os prismas possíveis e questionemos se há outras medidas que possam atuar no mesmo sentido e que tenham implantação mais simples.

Uma parte do debate sobre a alteração proposta por Peluso se refere ao âmbito penal, distante de minha especialidade e área de atuação como advogado. Mas creio que os avanços em discussão sobre mudanças nos Códigos Penal e de Processo Penal podem combater os artifícios utilizados pelas defesas meramente com intuito protelatório. Talvez esse seja um debate anterior ao que se desenrola quanto à existência de quatro instâncias judiciais.

A própria afirmação de que nosso sistema é de quatro instâncias, dito assim, de forma genérica, pode causar no leigo a falsa impressão de que todos os processos judiciais passam por quatro instâncias de julgamento, o que não é verdadeiro.

Súmulas do STJ e do STF impedem a maioria dos recursos de terem tramitação por aquelas Cortes, estabelecendo exigências de pré-questionamento, impedimento de debate de interpretação de cláusulas contratuais e aspectos fáticas etc.

Em verdade, aspectos fáticos dos processos, interpretação de cláusulas contratuais e temas que não tratem de normas federais ou constitucionais especificamente identificadas já têm hoje sua tramitação limitada à segunda instância, por conta das referidas súmulas.

Convém ainda analisar com atenção os efeitos de dois instrumentos criados pela Emenda Constitucional 45/2004, a da chamada Reforma do Judiciário. Refiro-me aos julgamentos de repercussão geral e às súmulas vinculantes, ambos voltados a reduzir o volume de julgados nas Cortes superiores.

O primeiro instrumento foi criado com o objetivo de “delimitar a competência do STF, no julgamento de recursos extraordinários, às questões constitucionais com relevância social, política, econômica ou jurídica, que transcendam os interesses subjetivos da causa” e de “uniformizar a interpretação constitucional sem exigir que o STF decida múltiplos casos idênticos sobre a mesma questão constitucional”.

A súmula vinculante, por sua vez, implementada pela primeira vez em 2007, teria como benefícios desafogar o Judiciário, ampliar a segurança jurídica, uniformizar as decisões dos diversos tribunais do país sobre casos semelhantes e barrar a subida de recursos repetitivos. Já li algumas críticas às súmulas, como concentração maior de poder no STF, diminuição da liberdade de julgar do juiz de primeira instância, incapacidade de sanar filigramas diferentes que possam existir em processos semelhantes, ampliação do caráter político do STF e efeito exclusivo à mais alta Corte do país.

Concordo com algumas dessas avaliações acerca das vantagens e desvantagens, discordo de outras. Mas, se quisermos aprofundar esse debate, é preciso analisar os impactos dessas medidas no volume de julgados nas instâncias superiores. E, sinceramente, uma análise mais acurada só será possível num prazo maior de vigência desses mecanismos novos.

A partir do levantamento de processos protocolados, distribuídos e julgados no STF, cujos números constam do próprio site da Corte*, verifica-se na última década a tendência de queda, ou desafogamento, do tribunal. De fato, em 2000, foram protocolados 105.307 processos, distribuídos 90.839 e julgados 86.138 —ou 81,79% do total protocolado, o que é um número fenomenal e motivador de elogios à Corte. Em 2010, os números foram 71.670 protocolados (queda de 31,94% em comparação com 2000), 41.014 distribuídos (54,85% a menos) e 103.869 julgados (17% a mais). Além disso, desde 2003, o STF tem conseguido julgar mais processos do que os protocolados, ou seja, tem reduzido o déficit de processos dos anos anteriores (ver gráfico).

É preciso pontuar que a Corte trabalha com um volume desumano há muito tempo e isso só acentua a necessidade de que algo precisa ser feito para desafogá-la. Por outro lado, há indícios de uma tendência em formação de redução da quantidade de processos no STF, especialmente a partir da Reforma do Judiciário. Em alguns anos saberemos se essa tendência se confirma. Cabe refletir também que impactos podemos alcançar com as reformas dos Códigos de legislação material e processual.

Quem se preocupa com melhorar as condições de apreciação e prestação jurisdicional no país deve ter todos esses elementos em mãos para que possamos caminhar no aperfeiçoamento do nosso sistema. O debate urge, mas não podemos correr riscos de comprometer valores e princípios valiosos ao Estado Democrático de Direito. O direito à ampla defesa com recursos garantidores do controle de constitucionalidade das decisões é algo essencial no sistema para evitar a ocorrência de injustiças muitas vezes graves.

Com a licença da metáfora, cabe a pergunta provocativa: não estaremos nós tratando uma grave, mas passageira, dor bucal extraindo o dente ao invés de obturá-lo?

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