A fase do “Por Quê”

A história de Marcelo vive com o menino tentando encontrar uma lógica para a linguagem. Por que ele se chamava Marcelo e não marmelo ou martelo?

 Portal Ciência & Vida

Meus filhos, na primeira infância, adoravam me ouvir contando histórias de Ruth Rocha. A mais cotada era Marcelo, marmelo, martelo. Depois, com os meus netos, percebi neles igual entusiasmo. O livro começava com os questionamentos do garoto Marcelo. Ele queria entender o motivo de a chuva cair, o mar não derramar, e o cachorro ter quatro patas. Tal situação me remeteu à “infância” da própria humanidade, quando os homens explicavam o mundo em que habitavam.

O simbólico carrega muito mais coisas do que pode mostrar, enquanto o literal apenas descreve e não o aprofunda. Jung considerava que as transformações no desenvolvimento do indivíduo recapitulam o desenvolvimento da própria humanidade. Então, a criança, ou a infância da humanidade, tenta mostrar uma lógica “poética” aos fenômenos observados, pois é dessa forma que a psiquê funciona.

Antes da ciência que hoje conhecemos, os homens, ao explicarem os fenômenos desconhecidos, criavam histórias que esclareciam aos estudiosos a engrenagem da psiquê. São os mitos – largamente utilizados para entender o homem. Ao interpretarem, por exemplo, que a Terra era o centro do Universo, compensavam a necessidade de encontrar uma importância para a existência do homem na Terra. Os alquimistas, por sua vez, ao procurarem a Pedra Filosofal, observavam os fenômenos da transformação da matéria e projetavam suas fantasias que serviriam à Psicologia Analítica.

Criamos mitos e com eles construímos alegrias e sofrimentos. Em Vidas secas, de Graciliano Ramos, a criança mais nova se identificava com o pai semianalfabeto, mas sonhava ser como ele.

A história de Marcelo vive com o menino tentando encontrar uma lógica para a linguagem. Por que ele se chamava Marcelo e não marmelo ou martelo? A língua se expressa por meio de formas e associações do significante com o significado. Marcelo não entendia a lógica, porque ela se relaciona com a raiz da palavra que ao longo do tempo vai escondendo sua raiz por ir adquirindo camadas de significados diversos.

 Por exemplo, Marcelo não entendeu a explicação do pai em relação ao bolo ser redondo, já que sua mãe fazia bolos quadrados. Ora, no latim, a observação de uma bolha de ar que surge na superfície da água, corresponderia ao som… bulla. Por isso, passamos a chamar essas formas esféricas de bolo. E, só porque o papa emitia certos documentos explicativos, do certo e errado, usando selos de lacre de forma redonda, tais informativos foram chamados de bula papal. O mesmo passou a ocorrer com as bulas dos remédios, por extensão a essa situação. Nossa cabeça também é uma bola sobre os ombros, daí ao planejarmos algo dizemos que “bolamos” essa coisa.

Para a palavra cadeira, Marcelo achava mais lógico chamá-la de “sentador”. O latim denominava cathedra o assento especial dedicado às autoridades. No entanto, a parte do corpo que se acomoda ao sentarmos também chamamos de cadeira. A cadeira ainda pode ser a definição de um lugar especial que se ocupa, por exemplo, na Academia Brasileira de Letras. A palavra mesa também veio do latim mensa, mas mesada e mensalão vieram de mês. É uma raiz que no indo-europeu chamavase tanto mês como lua. Lua e mês têm sua lógica, já que há uma regularidade no tempo em que fases da lua denunciam a passagem do tempo
medido em mês.

Essa lógica das palavras se perdeu no tempo, pois estava na raiz que vai ficando cada vez mais escondida à medida que as gerações se sucedem e a linguagem sofre suas transformações. Eu nasci no estado da Bahia e, por isso, sou baiano. Qual a lógica de se escrever Bahia com h e baiano sem h? Baía vem da palavra arredondar, que no latim se dizia baiare. Baía passou a ser o local onde o navio podia aportar. Isso inspirou Américo Vespúcio a batizar o meu estado de Bahia. Os linguistas convencionaram que Bahia continuaria com h, mas tudo que não fosse referência ao estado perdia o h. Ou seja, sabemos que a linguagem nasce das coisas e não as coisas das palavras.

Ao crescermos, perdemos nossa capacidade de fantasiar. No entanto, podemos resgatá-la se soubermos contar com a criança que nos habita. É essa criança a responsável pela fantasia dos poetas. A criança pode dizer que a árvore estava despenteada e o poeta entende. O poeta quando diz que o mar derramou sobre as rochas, é um ser adulto em contato com a sua criança, buscando mexer com as emoções e o uso do belo na linguagem, as metáforas. No entanto o garoto pode fazer a mesma poesia com outra intenção, a de questionar a lógica das coisas. A linguagem do poeta e do infante se aproxima de um ponto anterior ao nascimento da consciência.

A história termina mostrando que a comunicação em níveis diferentes dificulta o entendimento dentro de uma lógica. Quando duas pessoas em estágios desiguais de consciência dialogam, existirão dificuldades para se entenderem. Talvez seja essa a grande questão da humanidade. Há um mundo simbólico que está separado do mundo lógico que só consegue ver as coisas de forma literal. É esse o grande abismo a ser superado: o abismo entre o mundo dos poetas e a linguagem dos concretos. É tentar uma vez ou outra ser Marcelo, marmelo ou martelo.

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