A "ética" dos corruptos

Na verdade, até esperei, depois dessa frase sobre "a ética do mercado", que "o mercado" reagisse de alguma forma

Renato Janine Ribeiro – professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo-Valor Econômico

É ético um  jornalista usar câmaras secretas para comprovar um crime que, depois,  ele irá denunciar? Não discuto, aqui, a legalidade de sua ação, porque  não tenho a formação jurídica necessária para me pronunciar sobre as  leis e jurisprudência cabíveis no caso. Mas a questão adquire relevância  diante do fato que movimentou a sociedade brasileira na semana que  passou: a revelação, em imagens incontestáveis, de uma rede de corrupção  atuando justamente nos hospitais – o que torna particularmente desumano  o crime, porque está sendo cometido contra pessoas especialmente  vulneráveis. Isso, além de ser uma área em que cronicamente falta  dinheiro, até porque os custos com a saúde costumam subir mais que a  inflação, em parte devido aos grandes avanços que a medicina tem  conhecido.

O que é flagrante é a falta de ética das pessoas que  vimos no “Fantástico” e no “Jornal Nacional”. Os corruptos (vou  chamá-los assim, embora tecnicamente não o sejam, porque não são  servidores públicos) não mostraram nenhum pudor. Imaginando-se a salvo,  foram francos. Duas afirmações me chocaram em especial. Primeira, quando  uma senhora diz que está praticando “a ética do mercado”. Mas o que ela  faz não é nada ético. A não ser, claro, que use “ética” num sentido  apenas descritivo, como quando se diz que a “ética do bandido” é matar  quem o alcagueta, ou que a “ética do machista” é assassinar a esposa  suspeita de adultério. Contudo, um dos ganhos dos últimos anos tem sido a  redução desse emprego da palavra “ética”, só descritivo. Cada vez mais,  entendemos a ética como prescritiva, normativa, como exigente – não  como a mera descrição de condutas praticadas em alguma área da ação  humana. Uma expressão de Claudio Abramo, frequentemente citada pelos  profissionais da imprensa, é significativa: “A ética do jornalista é a  mesma do marceneiro, de qualquer pessoa”.

Educando os filhos para também serem corruptos.

Na  verdade, até esperei, depois dessa frase sobre “a ética do mercado”,  que “o mercado” reagisse de alguma forma. Se ela dissesse que essa é a  ética dos médicos, as associações não iriam protestar? É claro que “o  mercado” não é um sujeito. Aliás, sua riqueza e eficácia estão,  justamente, em ele não ser um sujeito único, mas uma rede em que se  cruzam e medem inúmeros sujeitos. No entanto, aqui se coloca uma questão  crucial, sempre presente quando se trata do capitalismo. Brecht tem a  frase famosa: “O que é roubar um banco, em comparação com fundar um  banco?” O capitalismo sempre esteve assombrado pela diferença entre o  lucro obtido legítima e legalmente, e o que é extorsão, usura, roubo. Na  Idade Média, a igreja cristã condenava a usura, dificultando as  operações de financiamento. Por outro lado, com o capitalismo já  consolidado, no final do século XIX um grupo de grandes empresários  norte-americanos era chamado de “robber barons”, barões ladrões, tal a  sua desonestidade. Contudo, o mesmo capitalismo cresce graças a uma  ética extremamente forte, que Max Weber, num livro clássico, aproximou  do protestantismo. Na verdade, a distinção entre o lucro e a extorsão é  crucial para o capitalismo. Um dos desafios para ele funcionar, e em  especial para se tornar popular, é convencer a sociedade de que seu  compromisso ético – com a construção da riqueza pelo trabalho e o  esforço – supera seus deslizes, os quais serão rigorosamente punidos. Ou  seja, “o mercado” precisa reagir. O debate sobre esse caso não pode  ficar circunscrito à área política. “O mercado” foi injuriado, tem de  responder.

O outro ponto assustador foi quando um dos personagens  gravados disse que sempre ensinava a seus filhos a virtude da  solidariedade. Disse isso com outras palavras, mas ele considerava digno  de educar seus filhos na formação de quadrilha. Aqui, estamos  diretamente na ética do crime. Mas, se na frase da senhora sobre o  mercado podíamos ver alguma ironia ou resignação (“a vida como ela é”),  na frase desse senhor se ouvia algo mais grave: a educação dos filhos, a  construção do futuro segundo a ótica do criminoso. Uma coisa é  resignar-se ao mundo como está e operar dentro dele. Outra, pior, é  entender que ele não vai melhorar e, portanto, a melhor educação que se  deve dar aos pequenos é ensiná-los a serem bandidos. Aqui, a tarefa  afeta, em especial, os educadores profissionais, como os professores, e a  multidão de educadores leigos, que são os pais e todos os que cuidam de  crianças. Mas, antes mesmo disso, ela passa por uma pergunta cândida:  podemos melhorar, em termos de sociedade, no que se refere ao respeito  da lei e dos outros? É possível convencermo-nos, e convencermos os  outros, de que seguir os preceitos éticos é absolutamente necessário? Ou  viveremos nas exceções? E isso diz respeito a todos nós.

Ocorreu-me,  uma vez, que no Brasil a lei tem papel mais indicativo do que  prescritivo. Explico: todos concordamos que se deve parar no sinal verde  – e a grande maioria o faz. Mas a pressa, o fato de não estar vindo um  carro pela outra via, a demora no sinal “justificam” eventualmente  passar no sinal vermelho. A lei deixa de ser lei para se tornar uma  referência, apenas; ou, pior, algo que espero que os outros respeitem  absolutamente, mas que infringirei quando me achar “justificado” a  fazê-lo. Guiando desse jeito, vários pais mataram os próprios filhos – e  isso continua acontecendo. Não precisaremos fortalecer, enquanto  sociedade, a convicção de que para um bom convívio é preciso repudiar  fortemente essas duas frases que, na sua euforia, os dois personagens  pronunciaram sem saberem que estavam sendo gravados? Enquanto isso,  obrigado aos repórteres que denunciaram esse crime.

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