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A era do oportunismo

José Serra

As últimas semanas trazem acontecimentos  reveladores de um aspecto peculiar da “luta política” no Brasil, como a  entendem o PT e o governo que ele lidera. Poderia ser resumido em dois  conceitos: o relativismo como ideologia e a tática de recolher  dividendos políticos sem se envolver diretamente, tirando, como se diz, a  castanha do fogo com a mão do gato.

A moral da fábula do macaco  esperto, que, faminto, mandava o bichano recolher as castanhas das  brasas esteve visível nos sucessivos movimentos na USP. A chamada  extrema esquerda desencadeou ações violentas e o petismo saiu a criticar  a “falta de diálogo” e a “falta de democracia” que supostamente  estariam na raiz dos distúrbios.

De olho no voto moderado, o PT  não quer para si os ônus do radicalismo ultraminoritário, mas pretende  sempre recolher os bônus de se apresentar como a solução ideal para  evitar essa modalidade de movimento político. Como se, em algum lugar do  mundo ou momento da História, o extremismo, de direita ou de esquerda,  tivesse sido contido apenas com diálogo e negociação. É um discurso  conveniente, pois se apresenta como alternativa “racional” de poder. Uma  vez lá, os tais movimentos serão cooptados na base da fisiologia e, se  necessário, da repressão. Os críticos exigirão “coerência” e o partido  fará ouvidos moucos.

Mas a vida é mais complicada do que esses  esquemas espertos. À medida que vai acumulando força, o PT precisa lidar  com desafios concretos e, aí, surge a utilidade do relativismo. Querem  um exemplo? Quando um governante adversário cuida de garantir o  cumprimento da lei e manter a ordem pública, o aparato de comunicação  sustentado com verbas públicas sai a campo para denunciá-lo, atacá-lo,  desgastá-lo a qualquer custo. Quando, porém, esse governante é do PT ou  aliado próximo, a posição se inverte.

Se o adversário cumpre a  lei, é acusado de “criminalizar os movimentos sociais”; quando um deles  cumpre a mesma lei, então são eles a criminalizar. Assim, os PMs em  greve na Bahia governada pelo PT são chamados de “bandidos”. Cadê o  exercício do entendimento, a tolerância? Em São Paulo, em 2008, o PT  ajudou na organização de uma marcha de policiais civis grevistas rumo ao  Palácio dos Bandeirantes – marcha que, felizmente, não atingiu os  objetivos sangrentos almejados.

Em Estados governados pelo petismo  e aliados, são rotineiras as reintegrações de posse, mas quando  precisam ser feitas em São Paulo, por exemplo, a mando da Justiça e  sempre sob sua supervisão, o PT – e eis de novo a história das castanhas  – cavalga o extremismo alheio para denunciar inexistentes violações  sistemáticas dos direitos humanos. Nunca ofereceu uma possível solução  ao problema social específico, mas se apresenta incontinenti quando  sente a possibilidade de sangue humano ser vertido e transformado em  ativo político.

Vivemos uma era em que o oportunismo político do  PT acabou ganhando o status de virtude. Perde-se qualquer referência  universal ou moral de certo e errado e essa separação é substituída por  outra. Se é o partido que faz, tudo será sempre correto – os fins  justificam os meios, seja lá quais forem esses fins. Se é o adversário,  tudo estará sempre errado, pois suas intenções sempre seriam viciosas. A  política torna-se definitivamente amoral.

É uma lógica que acaba  derivando para o cômico em algumas situações. No atual governo, os  ministros foram divididos em duas classes. Alguns são blindados, podem  dar de ombros quando são alvo de acusações; outros são lançados ao mar  sem muita cerimônia. Quando é do PT, especialmente se for do grupo  próximo, a proteção é altíssima. Mas se tiver a sorte menor de ser  apenas um “aliado” – conceito que embute a possibilidade de se tornar  futuramente um adversário -, logo aparecem os vazamentos dando conta de  que “o Palácio” mandou o infeliz se explicar no Congresso, a senha para  informar aos leões que há carne fresca na arena.

Essa amoralidade  essencial se estende às políticas públicas. Em 2007, quando governador  de São Paulo, aflito com o congestionamento aeroportuário, propus ao  presidente Lula e sua equipe a concessão à iniciativa privada de  Viracopos, cujo potencial de expansão é imenso. Nada aconteceu. Na  campanha eleitoral de 2010, a proposta de concessões foi satanizada.  Pois o novo governo petista a adotou em seguida! Perdemos cinco anos! E a  adotou privatizando também o capital estatal: o governo torna-se sócio  minoritário (49% das ações) e oferece crédito subsidiado (pelos  contribuintes, é lógico) do BNDES. Tudo o que era pra lá de execrado  passou a ser “pragmatismo”, “privatização de esquerda”.

O ridículo  comparece também à internet, onde a tropa de choque remunerada, direta  ou indiretamente, com dinheiro público e treinada para atacar a  reputação alheia desperta ou se recolhe em ordem unida, não conforme o  tema, mas segundo os atores. São os indignados profissionais e  seletivos. Como aquelas antigas claques de auditório, seguindo  disciplinadamente as placas que alternam “aplaudir”, “silenciar” e  “vaiar”.

Vivemos tempos complicados, um tanto obscuros, algo assim  como “se Deus está morto, tudo é permitido” – e chamam de “pragmatismo”  o oportunismo deslavado. A oposição, a despeito de notáveis destaques  individuais, confunde-se no jogo, dado o seu modesto tamanho, mas também  porque alguns são sensíveis aos eventuais salamaleques e piscadelas dos  donos do poder. Um adesismo travestido de “sabedoria”. A política real  vai se reduzindo a expedientes necessários à manutenção do poder e à  mitigação do apetite dos aliados. A conservação do statu quo supõe uma  oposição não mais do que administrativa e burocrática. Parece que a nova  clivagem da vida pública é esta: estar ou não na base aliada, de sorte  que a política se definiria entre os que são governo e os que um dia  serão.

Não sou o único que pensa assim, mas sou um deles: política  também se faz com princípios, programa e coerência. E disso não se pode  abrir mão, no poder ou fora dele.

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