A carência de Ética

Conhecimento Científico - R7

Todo e qualquer estudo de natureza jurídica que tenha como cenário (e pano de fundo) a Sociedade, enquadrando as diversas relações humano-jurídicas tem como ponto de partida a conduta humana, suas condicionantes, seus pressupostos e seus reflexos. Observando as relações humanas na Sociedade, sob o viés da Ética sobressai, naturalmente a cognição acerca dos valores aplicáveis ao homem.

Não se trata, contudo, e efetivamente, dos valores pessoais, íntimos, as percepções e divagações mentais que não se exteriorizam na forma de ações (ou, mesmo, omissões). Estas, efetivamente, pertencem ao campo de estudo de outras ciências, como a Filosofia, a Psicologia e a Psicanálise. Interessa-nos, em verdade, perquirir acerca da convivência humana, baseada em valores (pessoais e coletivos) que são pertinentes e peculiares a grupos sociais e épocas temporais, embora, cada vez mais, a homogeneidade das culturas e o acesso à informação e aos meios de comunicação possibilite a constatação da existência e padrões de conduta globalizados, uniforme ou similarmente considerados.

O grande diferencial de análise, todavia, é a evolutividade dos conceitos, em razão do próprio progresso humano-social. Novos conceitos vão sendo descobertos, incentivados ou incorporados, e pode-se dizer com aferição que a progressão individual conduz à coletiva e, quando não muito, esta última impulsiona e impele os indivíduos (isoladamente considerados) à mudança. Os sujeitos humanos, então, criam e recriam constantemente seus próprios valores, os quais determinam o que e como agir.

Ora, é justamente esta qualificação da conduta humana que define se os atos são bons ou não, em virtude do reflexo (efeito) que provoque nos semelhantes. Em outros termos, a reação dos outros em relação a qualquer atitude nossa permite aferir se o comportamento que esposamos é benéfico ou maléfico. Por conseguinte, as alterações supervenientes deste comportamento irão repercutir em resultados melhores (ou piores) para o indivíduo, interferindo decisivamente na espécie de relacionamento que ele terá a partir de então.

E é o Direito, portanto, que estabelece ou permeia, de modo prospectivo e impositivo, prescrevendo certos valores como obrigações (de dar, de fazer ou de não-fazer).

É a Ética a ciência que se debruça sobre o comportamento humano (moral e jurídico), sobretudo a partir de Aristóteles e sua filosofia helênica (a que se somam Sócrates e Platão) – cujo pensamento influenciou praticamente todos os que se dedicaram a estuda-la – até chegarmos a Kant com sua “ética com base na razão”. O ponto comum entre os gregos era: o desejo de responder às perguntas sobre qual seria a melhor maneira do homem viver e morrer, colocando a ética na ordem do dia para se transformar no mais importante projeto filosófico daquela comunidade. O cerne da questão era, assim, saber em que consistia a verdadeira felicidade e como ela poderia ser alcançada.

Para Aristóteles, o cidadão é bom e virtuoso não por estar cumprindo a letra da lei, mas, muito além, por possuir uma disposição interior permanente, por formação e cultivo diário, no esforço de cumprir seus deveres legais na comunidade onde está inserido, sendo, assim, totalmente responsável por suas mínimas ações.

Obviamente, este ensaio não se destina a tratar da ética individual, embora esta seja o ponto de partida para os campos de convivência e relação social. Nosso intuito é o de demonstrar a indizível necessidade da Ação Pública Ética, ou seja, a imperiosa observância – não só em face do arcabouço constitucional-legal-jurídico-judicial existente, mas pelo próprio fundamento de existência do Estado – por parte dos órgãos, poderes e administradores públicos.

O desenho de uma “nova” Administração Pública, centrada na Ética, parte da total transparência de todas as atividades públicas, embora isto possa representar, em muitos aspectos, uma volta ao começo, com o resgate de lições clássicas que se eternizaram no tempo. Isto porque o ente administrativo é um mero curador dos interesses públicos, não possuindo qualquer disponibilidade sobre os interesses públicos confiados à sua guarda e realização, exercendo apenas o caráter instrumental, de cumpridor da lei.

Recordemos que cada uma das atividades administrativas públicas, por repousar sobre bens, interesses e serviços que constituem o patrimônio da coletividade, sujeita-se aos deslocamentos de um pêndulo que sempre se movimenta entre o que prescreve a lei e a noção de moralidade, voltado sempre ao bem comum.

Por isto, qualquer análise, controle ou fiscalização dos entes governamentais será direcionada para o “além-norma”, a fim de verificar se o comportamento da Administração (ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente), mesmo em consonância com a letra da lei, possa ofender a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, bem como os princípios de justiça e de equidade. Neste contexto, estar-se-á diante da agressão à Ética na Administração Pública e, por extensão, ao próprio Direito. Ou não.

Em nossa sociedade são facilmente identificáveis os seguintes males organizacionais: corrupção (utilização dos meios instrumentais para finalidades privadas ou escusas); suborno (concessão de recompensas a grupos particulares, que direcionam ou controlam as realizações da organização; nepotismo e favoritismo (preferência aos ‘amigos do rei’, ou parentes, e prioridade aos compromissos ‘politiqueiros’, acima dos critérios administrativos ou burocráticos); simples ineficiência, causada por inúmeros fatores, tais como ignorância, incompetência, desmotivação, despreparo, inexistência de recursos e má gerência.

Diante de uma sociedade (em que somos copartícipes) onde os valores estão ausentes, ou, no mínimo, confusos, parece ser a tônica tirar vantagem, ser vencedor, ter mais poder do que os outros, ou sair por cima. Construir um novo “locus” social, passa por alcançar o efetivo direito à informação e na educação dos indivíduos. Uma conquista árdua que evolui do talvez para o sim, do posso para o devo. Exigir, assim, passa a ser um hábito, (embora refletido), incorporado ao convívio da pessoa, que não pode, outrossim, escravizar-se nessa postura, uma vez que todos os excessos – os limites – são prejudiciais.

No estágio em que nos encontramos, ainda não é possível depender unicamente dos processos eleitorais, porque o poder delegado aos representantes (já que emana do povo), na forma de decisão acerca de nossos destinos. Requer, portanto, a constância da consciência pública através de atos que vão do acesso incondicional à informação até a aferição da sintonia que deve haver entre a representatividade política e os objetivos e necessidades (gerais) dos cidadãos.

O “novo” modelo de Administração Pública, com as indispensáveis noções de Ética, contempla a apropriação de atributos que envolvam a ideia de grupo, de cumplicidade, de colaboração. Facilitar a adesão e a contribuição das pessoas aos projetos, introduzir práticas que valorizem e estimulem a participação em todos os níveis de decisão e execução, baseadas na delegação de autoridade, na descentralização de poder e na desconcentração de tarefas. Toda a ação das organizações públicas e, por extensão, de cada agente ou funcionário público deve ser direcionada à satisfação do cliente/usuário ou do cidadão, o verdadeiro destinatário” das ações administrativas.

Há, deste modo, a precípua necessidade de propiciar a participação popular na fase de definição das metas governamentais, pois só assim se investirá na cumplicidade pública, no dever de fiscalizar e de exigir os resultados esperados. Essa participação, assim, pressupõe um Estado (Democrático) de Direito vigente que respeita os direitos fundamentais do cidadão – sobretudo, a liberdade de associação, de comunicação e manifestação do pensamento, imprescindíveis à verdadeira participação.

Esperamos, por fim, que a maturidade democrática possa nos conduzir à verdadeira participação popular que, associada à seriedade e à responsabilidade no trato da res publica, serão os débitos a serem saldados, do poder público para com a população/sociedade, credenciando o país a figurar entre as nações que adotam a Ética não como imperativo legal, mas como atributo de espiritualidade (individual e coletiva).

E que assim seja!

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