Ainda as privatizações

Passados tantos anos das primeiras privatizações de empresas e concessões de serviços públicos, e dada a sua continuidade em governos controlados por partidos que se opunham ferozmente a elas, a relevância ideológica da discussão é marginal

Fernando Henrique Cardoso- Estadão

A  recente e tardia decisão do governo federal de enfrentar o péssimo  estado da infraestrutura aeroportuária deu margem a loas de quem conhece  a precariedade de nossos aeroportos e a justificativas envergonhadas  por parte de dirigentes petistas, segundo os quais “concessões” não são  privatizações, como se ambas não fossem modalidades do mesmo processo.

Passados  tantos anos das primeiras privatizações de empresas e concessões de  serviços públicos, e dada a sua continuidade em governos controlados por  partidos que se opunham ferozmente a elas, a relevância ideológica da  discussão é marginal. Só o oportunismo eleitoral pode explicar por que  insistem num tolo debate que sustenta ser “patriótico” manter sob  controle estatal um serviço público, ao passo que concedê-lo à  iniciativa privada, com ou sem a venda da propriedade, é coisa de  “entreguista”.

Esvaziar o Estado de funções econômicas não passou  pela cabeça dos constituintes, nem dos congressistas ou dos governos que  regulamentaram ou modificaram a Constituição para adequá-la às  transformações da realidade produtiva. Ainda no final dos anos 80 houve  privatização de empresas de menor importância que se haviam tornado  estatais porque o Estado as tinha salvado da falência, nas chamadas  operações-hospital do BNDES.

No começo dos anos 90, já  regulamentadas em lei, as privatizações ganharam corpo. Alcançaram, por  exemplo, o obsoleto parque siderúrgico do País, que desde então passou  por imensa modernização, com apoio do BNDES, não mais na função de  socorrer empresas falidas, mas de promover a atualização do setor  produtivo. Na segunda metade dos anos 90, quando se tratou de atrair o  capital privado para os investimentos que o Estado já não podia fazer na  oferta de telecomunicações, energia, petróleo, etc., flexibilizaram-se  monopólios estatais e se criaram as agências reguladoras para assegurar a  competição nesses setores, evitando o surgimento de monopólios  privados. O governo atuou não apenas para aumentar a concorrência nos  leilões – e, portanto, o ágio recebido pelo Tesouro -, mas também para  apoiar, por meio do BNDES, o investimento privado que se seguiu à  desestatização.

No caso do petróleo, depois da quebra do  monopólio, em 1997, a Petrobrás transformou-se numa verdadeira empresa  moderna, menos sujeita a influências político-fisiológicas, que hoje se  insinuam novamente. Diziam que o governo queria privatizá-la, quando, na  verdade, estava comprometido a fortalecê-la. Mantida sob o controle da  União, mas submetida à competição, tornou-se uma das cinco maiores  petrolíferas do mundo. A participação acionária do setor privado na  companhia, existente desde o período Vargas, foi ampliada, até com a  possibilidade de uso do FGTS para a compra de ações por parte dos  trabalhadores. As contas da empresa tornaram-se mais transparentes para o  governo e para a sociedade. A quebra do monopólio veio acompanhada de  uma política de indução ao investimento local na indústria do petróleo,  com a fixação de porcentuais de conteúdo nacional já nas primeiras  licitações realizadas pela ANP. Medida adotada, no entanto, com o  equilíbrio necessário para evitar aumento nos custos dos equipamentos e  atrasos em sua produção, como agora se verifica.

Nas  telecomunicações houve uma combinação de privatização e concessão de  serviços. No caso da telefonia celular poucos foram os ativos  transferidos, pois ela praticamente inexistia no País. Estamos vendendo  vento, brincava Sérgio Motta, então ministro das Comunicações, que  sonhava com o dia em que celulares seriam vendidos em todo canto. Pena  ter morrido antes de ver seu sonho realizado. Hoje existem no Brasil  mais celulares do que habitantes. Na desestatização do Grupo Telebrás  houve transferência de ativos. A divisão da holding em várias empresas  foi classificada de esquartejamento, quando pretendia assegurar a  competição no setor. Graças a esse novo ambiente e às regras  estabelecidas pelo governo, as empresas privatizadas foram obrigadas a  fazer pesados investimentos para acompanhar os avanços tecnológicos e  ampliar o acesso às linhas, inclusive à internet, deixando-nos sem  saudades do antiquado sistema de telefonia pré-privatização.

Já no  caso da Vale do Rio Doce, assim como da Embraer, houve privatização  pura e simples, com a ressalva de que, nesta última empresa, o governo  manteve uma golden share, com direito a veto; e o BNDES adquiriu e  manteve uma posição importante, de cerca de 20%, no controle da  mineradora. Para não falar na participação dos fundos de pensão das  empresas estatais. Na privatização da Vale, os críticos diziam que o  governo estava alienando o subsolo nacional – uma afirmação descabida,  já que este era e continuou a ser propriedade da União, conforme manda a  Constituição. Falavam também que a empresa terminaria  “desnacionalizada”, com número menor de empregos – retórica que os fatos  posteriores desmentem sem margem à contestação. Ainda se escutam  murmúrios do surrado argumento de que a mineradora, que hoje vale muito  mais do que o bom preço por ela pago à época, foi vendida por valor vil  (não foi o que se viu no leilão, vencido por um grupo nacional que ousou  no preço bem mais do que o considerado razoável pelos demais  concorrentes). Ora, se hoje a Vale tem valor em bolsa da ordem de US$  100 bilhões, é porque, liberta das amarras estatais, pôde chegar aonde  chegou.

Os que criticam as privatizações são os mesmos que se  gabam dessas empresas e de sermos hoje a quinta economia do mundo.  Esquecem-se de que isso se deve em muito ao que sempre criticaram: além  das privatizações, o Plano Real, o Proer, a Lei de Responsabilidade  Fiscal, enfim, a modernização do Estado e da economia. Mas atenção: não  basta fazer concessões e privatizar. É preciso fazê-las com critérios  predefinidos, elaborar editais claros, exigir que se cumpram as  cláusulas das licitações e evitar que as agências reguladoras se  transformem em balcões partidários.

Esperemos para julgar o que ocorrerá com os aeroportos.

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