O papa em Cuba

Em 1998, logo após o papa João Paulo II encerrar sua visita a Cuba, participei de almoço oferecido por Fidel a um grupo de teólogos

Frei Betto-Escritor-Correio Braziliense

Para  desgosto e fracasso das pressões diplomáticas da Casa Branca, o papa  Bento XVI chega a Cuba em 26 de março. Fica três dias na ilha, após  entrar na América Latina pelo México. A 28 de março, celebra missa na  Praça da Revolução, em Havana. Bento XVI celebrará, em Santiago de Cuba –  histórica cidade do Quartel Moncada, onde Fidel iniciou a luta  revolucionária, em 1953 – os 400 anos da aparição da Virgem da Caridade  do Cobre.

Em 1998, logo após o papa João Paulo II encerrar sua  visita a Cuba, participei de almoço oferecido por Fidel a um grupo de  teólogos. Em certo momento, um teólogo italiano manifestou, do alto de  seu esquerdismo, indignação pelo fato de o pontífice haver presenteado a  Virgem da Caridade com uma coroa de ouro.

Fidel não escondeu seu  desconforto. E reagiu: “A Virgem do Cobre não é apenas padroeira dos  católicos de Cuba. É padroeira da nação cubana”. E passou a relatar como  sua mãe, Lina Ruz, católica devota, fez ele e Raúl prometerem que, se  saíssem vivos de Sierra Maestra, haveriam de depositar suas armas junto  ao santuário para pagar a promessa que ela fizera. Em 1983, ao visitar o  santuário pela primeira vez, vi ali as armas.

Por essas  “cristoincidências” que só a fé explica e as pesquisas elucidam, a  Virgem da Caridade e Nossa Senhora Aparecida têm tanto em comum quanto  Cuba e Brasil. Como disse Inácio de Loyola Brandão, “Cuba é uma Bahia  que deu certo”. As duas imagens foram encontradas durante a colonização:  lá, em 1612, a espanhola; aqui, em 1717, a portuguesa. As duas, na  água. As duas achadas por três pescadores. Lá, no mar; aqui, no Rio  Paraíba. As duas são negras.

O papa chega a Cuba no momento em que  o país passa por mudanças substanciais, sem, no entanto, abandonar seu  projeto socialista. Há um processo progressivo de desestatização,  abertura à iniciativa privada, e mais de 2 mil prisioneiros foram soltos  nos últimos meses.

Hoje, as relações entre governo e Igreja  Católica podem ser qualificadas de excelentes. Já não há na ilha  resquícios do clero de origem espanhola e formação franquista, que tanto  incrementou o anticomunismo nos primeiros anos da Revolução, quando um  padre promoveu a criminosa Operação Peter Pan: convenceu os pais de 14  mil crianças de que haveriam de perder o pátrio poder e que seus filhos  passariam às mãos do Estado…

Carregou as crianças para Miami,  sem pais e mães, e o resultado, como se pode imaginar, foi catastrófico.  A revolução não foi derrotada pela invasão da Baía dos Porcos,  patrocinada pelo governo Kennedy, nem todas as crianças escaparam de um  futuro de delinquência, drogas e outros transtornos. Milhares jamais  foram localizadas depois pelas famílias.

Tanto o Vaticano quanto  os bispos cubanos são contrários ao bloqueio que os EUA impõem à ilha.  Pode-se discordar de muitos aspectos do socialismo daquele país, mas  ninguém jamais viu a foto de uma criança cubana jogada na rua, famílias  morando debaixo da ponte e máfias de drogas. Em Havana, um outdoor exibe  um menino sorridente com esta frase abaixo da foto: “Esta noite 200  milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana”.

Cuba  tem muitos defeitos, mas não o de negar a 11 milhões de habitantes os  direitos humanos fundamentais: alimentação, saúde, educação, moradia,  trabalho e arte (vide o cinema e o Buena Vista Social Club). O que  mereceu elogios de João Paulo II durante sua visita de sete dias – uma  das mais longas de seu pontificado.

Hoje, Cuba recebe,  proporcionalmente, mais turistas que o Brasil. O que é uma vergonha para  nosso país de dimensões continentais e com tantos atrativos. A  diferença é que Cuba promove não apenas turismo de lazer (suas praias  são paradisíacas), mas também turismo científico, cultural, artístico e  desportivo.

A Revolução Cubana resiste há 54 anos, malgrado os  atos terroristas contra aquele país, descritos em detalhes no  best-seller de Fernando Morais, Os últimos cinco soldados da guerra fria  (Companhia das Letras, 2011). E o fato de suportar, no seu litoral, a  base estadunidense em Guantánamo, que lhe rouba parte do território,  para utilizá-lo como cárcere de supostos terroristas sequestrados mundo  afora. Quem sabe a resistência cubana seja mais um milagre da Virgem da  Caridade…

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