STF, Congresso e os cidadãos: entre a democracia e a juristocracia

Othoniel Pinheiro Neto  

Defensor Público/ Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL/ Especialista em direito processual e em direito eleitoral

Antes de tudo, é preciso informar adequadamente à população brasileira a respeito do conteúdo da PEC 33/2011. O texto não defende uma supremacia parlamentar diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, mas sim, uma supremacia dos cidadãos brasileiros que serão consultados acaso o STF anule uma Emenda Constitucional brasileira e que Congresso Nacional não concorde com tal anulação.

A propósito, vejam um dos pontos da proposta:

“Art. 102. …

§ 2º-A As decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade que declarem a inconstitucionalidade material de emendas à Constituição Federal não produzem imediato efeito vinculante e eficácia contra todos, e serão encaminhadas à apreciação do Congresso Nacional que, manifestando-se contrariamente à decisão judicial, deverá submeter a controvérsia à consulta popular.”

 

Ainda preliminarmente, é preciso que o cidadão brasileiro saiba distinguir decisões jurídicas e decisões políticas, pois estas últimas vêm tomando conta das deliberações da nossa Suprema Corte sob o pretexto de que se tratam de matérias constitucionais. Os exemplos são muitos: discussão sobre a lei de biossegurança, demarcação de terras indígenas, verticalização partidária, distribuição dos royalties do petróleo etc.

O doutrinador americano Jeremy Waldron, em seu livro “A dignidade da legislação. p. 02”, ao criticar a prevalência do judiciário sobre os demais poderes, aduz que nós construímos uma boa imagem da arte de julgar e, ao mesmo tempo, emolduramos um retrato da má fama do legislar. Para o autor, nós “pintamos a legislação com essas cores soturnas para dar credibilidade à idéia de revisão judicial (isto é, revisão judicial da legislação, sob a autoridade de uma carta de direitos) (…)”.

Hoje, o debate gira em torno do poder político que o STF tem e sua invasão demasiada da função legislativa. São várias decisões políticas travestidas de questões constitucionais, em que belas e doutas fundamentações jurídicas inviabilizam a compreensão da imensa maioria da população, concedendo status de autoridade e de indiscutibilidade ao que foi imposto pala Corte Suprema. Dessa forma, com esse ilimitado poder e com o pretexto de tratar-se de matéria constitucional, o STF pode anular decisões tomadas em plebiscito, expurgar emendas constitucionais, impor interpretações da melhor forma que lhe convier, “tomar a caneta” do Presidente da República e até mesmo, retirá-lo do poder, bastando, para isso, falar o constitucionês.

Mas esse cenário tem suas origens justificantes. É que, com a construção doutrinária do final do Século XX do chamado neoconstitucionalismo, inaugurou-se uma nova era do direito constitucional, que possibilitou uma ligação entre a Constituição e os demais ramos do direito, abrindo espaço para que quase tudo seja debatido sob o viés constitucional. O efeito disso é que, por intermédio do controle concentrado de constitucionalidade, o STF está autorizado a discutir quase tudo o que o Congresso Nacional votar, extrapolando, até mesmo, os limites pretendidos pela Assembléia Nacional Constituinte de 1988.

O resultado prático disso é que os ministros, cada um analisando as matérias de acordo com sua visão pessoal (ninguém é imparcial!), por diversas vezes, divergem entre si a respeito da inconstitucionalidade de matérias. A lógica então é matemática: apenas 6 ministros podem expurgar qualquer decisão tomada na República Federativa do Brasil.

Um exemplo discutível ocorreu em março de 2013, com a decisão liminar da Ministra Carmem Lúcia, na ADI 4917, que suspendeu os efeitos da lei de distribuição dos royalties do petróleo (Lei 12.734/2012), prejudicando a grande maioria dos brasileiros ao beneficiar os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Tal situação pode exemplificar bem o poder que o STF tem diante de normas discutidas e aprovadas pelo Congresso Nacional.

Outra situação que é bom esclarecer, é o equívoco por parte daqueles contrários à PEC 33 ao citar Monstesquieu. O filósofo e escritor francês, que construiu a tese da separação de poderes, em momento algum abordou esse esquema atual de controle direto de constitucionalidade, em que o judiciário anula normas expedidas pelo legislativo. Frise-se que o modelo de controle concentrado tem origem na Constituição da Áustria de 1920 e foi inspirada nos ensinamentos de Hans Kelsen, nada tendo a ver com Montesquieu.

Nesse mister, vale frisar que a juristocracia é um sistema em que os juízes ditam as regras e dão a palavra final, enquanto os demais estariam excluídos do poder, entre outros motivos, justamente pela falta de aptidão intelectual de compreender “questões jurídicas constitucionais”. Porém, não é preciso esforço maior para entender que, para que alguém tome uma decisão política, não é preciso conhecimento jurídico, ou até mesmo maiores conhecimentos escolares, já que, as opiniões individuais e orientações políticas são frutos de fatores particulares de cada um e, até mesmo, frutos de interesses pessoais.

Assim, afastar a participação popular nas decisões políticas principais na nação significa retroagir na história humana, resgatar a República de Platão, no Século IV antes de Cristo. Essa República Platônica trazia um modelo de governo em que somente os filósofos tinham sabedoria necessária para governar a cidade, enquanto outros, como os lavradores, artesão e comerciantes estavam impedidos de expressar opiniões e deviam ter capacidade de bem servir às leis postas pelas classes superiores.

Creio que não é isso que queremos para o Brasil.

Aqui, o que está acontecendo é que diversos brasileiros (muitos deles manifestando-se em redes sociais) estão achando um absurdo tocar no tema que é tratado, repita-se, com extrema normalidade em outros países. No Brasil, está se falando que a PEC quebra a separação dos poderes e, pasmem, citam Montesquieu que, em nenhum momento, vislumbrou a possibilidade do judiciário “controlar a constitucionalidade” das normas emitidas pelo parlamento.

Vale repisar, que a PEC 33 apenas reposiciona o STF em um cenário em que o mesmo tem abusado de seus poderes, e que vem quebrando, aí sim, o princípio da separação dos poderes.

É também fácil observar nas decisões do STF a importância concedida ao constitucionalismo americano e europeu e seus doutrinadores que vivem em países de primeiro mundo. Ao mesmo tempo, observa-se o pouco valor dado ao constitucionalismo latino-americano, que aborda problemas similares aos nossos e abre espaço para os sistemas de democracia direta. Mas por falar em doutrinadores americanos e europeus, são justamente esses que estão travando debates a respeito das limitações dos poderes do judiciário diante do sistema democrático. Autores como Jeremy Waldron, Jorge Reis Novais, John Hart Ely, Jeremy Bentham, Jürgen Habermas e John Rawls já publicaram livros que abordam a temática sem causar qualquer espanto na comunidade jurídica de seus países, ao contrário do Brasil, local em que, somente pelo fato de estarmos tocando no assunto, estão tratando isso como uma blasfêmia.

De toda forma, esse é um tema que, mesmo se for sepultado agora, vai vir à tona novamente, até por que, esse assunto é recorrente na doutrina mundial e, é muito verossímil afirmar que o STF vai tornar a abusar de seu suprapoder futuramente, pois, na linha do próprio Montesquieu, em sua “verdade eterna”, qualquer pessoa que tenha o poder tende a abusar dele.

Diante disso, entendo que devemos defender o sistema democrático e que a palavra final deve ser do povo (direta ou indiretamente). E se o nosso sistema representativo não funciona a contento, não é motivo para atribuir poder de decisão ao judiciário, mas sim, encontrar alternativas, desde que se respeite o valor de cada cidadão brasileiro em uma democracia pluralista.

Por outro lado, é fato que em excepcionais casos pontuais na história mundial, regimes como o nazismo (leia-se: ditadura do executivo) surgiram por intermédio do sistema democrático. Porém, entendo que tais fatos não são motivos para ceifar a democracia, mas sim, de fortalecer os sistemas de separação de poderes, o de defesa internacional dos direitos humanos e, especialmente, o de defesa das minorias.  Em relação a esse último ponto (defesa das minorias contra a maioria), os autores têm concordado que é o judiciário o principal ator nesse mister. O papel do judiciário seria de identificar tais casos e prontamente intervir para salvaguardar os direitos da minoria (isso não se confunde com tomar decisões políticas).

Portanto, é importante que cada cidadão brasileiro pense bem antes rechaçar sumariamente o debate a respeito da PEC 33 e de defender uma espécie de República de Platão no Brasil, sendo importante não esquecer que estamos num país pluralista e que a democracia foi conquistada a duras penas não só aqui, mas também em muitos países que têm uma Constituição como a nossa.

Entendo que a palavra final deve ser atribuída a todos (assim como está na PEC 33), e que esta é a melhor forma de se praticar uma democracia que, por mais defeitos que tenha, é a melhor sistemática que temos na história.

Assim, não é salutar calar o debate ou tratar isso como uma “guerra entre poderes”, pois as conseqüências dessas atitudes (ou omissões) poderão ter efeitos devastadores para o nosso Estado Democrático de Direito.

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