1,5 milhão de trabalhadores são semi-escravos no Brasil

Joelice Alves dos Santos, 42 anos, já está há 22 sem emprego. Teve de sair quando nasceu o mais velho dos 10 filhos. Hoje, ela junta garrafas e sucata nas ruas, que se acumulam no quintal da casa onde vive com a família, em Valparaíso (GO). Ela não tem saudades da vida de doméstica, que começou quando mal tinha saído da infância, aos 12. “As pessoas gostam de humilhar muito a gente”, conta. Uma cena está viva na memória. De quando pediu à patroa que tirasse a sandália suja de terra ao entrar em casa. “Ela respondeu que fazia o que queria, porque a casa era dela”, relata Joelice passando a mão nos olhos, que começam a marejar.

Além da coleta de sucata, que inicia no fim do dia, ela cuida do filho de uma amiga por R$ 200 mensais e recebe R$ 350 do Bolsa Família. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,5 milhão de trabalhadores do país vivem como semi-escravos, recebendo até meio salário mínimo ou R$ 339.

Tão difícil quanto encontrar uma doméstica que queira ver a filha na mesma profissão é se deparar com uma trabalhadora sem lembrança de constrangimento no emprego. Maria Raimunda da Silva, 32, moradora de Águas Lindas de Goiás, relata que numa das casas onde trabalhou tinha de abrir a bolsa todo fim de expediente. “É um serviço honesto (o da doméstica), mas o pessoal não enxerga isso”, queixa-se Raimunda, que pretende voltar a trabalhar em casas.

Mesmo entre as que não estão nas posições mais precárias, há reclamações. Suêmia da Silva Gomes, 29, que recebia R$ 900 para trabalhar num apartamento na Asa Sul, conta que não gostou de a patroa ter chamado a atenção dela na frente de convidados quando colocou uma xícara em posição errada sobre a mesa. Suêmia sabe que, com as novas regras na Constituição, isso vai mudar. “Certos patrões fazem da doméstica gato e sapato. Não vai mais ser assim.”

A professora da Universidade Brasília (UnB) Christiane Machado Coelho, especialista em sociologia urbana e do trabalho, explica que o dia a dia dos patrões e empregados domésticos não é igual ao de outras situações profissionais. “São relações profundamente ambíguas, na fronteira entre o público e o privado”, aponta. Para ela, um agravante é a herança da escravidão. “A elite vê com maus olhos os serviços de casa”. As tarefas, explica, tornam-se invisíveis, como se fosse natural que algo fora de ordem ficasse em seguida arrumado. A professora defende readaptações nos dois lados, em que sejam percebidos direitos e obrigações.

Especialistas em recursos humanos aconselham as domésticas a compreender que cobranças, feitas em tom polido, são comuns no trabalho — a dificuldade, porém, é enxergar uma residência como ambiente profissional, nas duas pontas da hierarquia. A aprovação das novas regras, na avaliação de Christine, tende a mudar as relações sobretudo do ponto de vista jurídico. “Mas há também o plano simbólico”, com mudanças mais lentas.

Na situação atual, muitas domésticas veem a própria situação como algo indesejável. “Quando a gente fala que é empregada, não tem moral. Dá até vergonha”, conta Evanilda da Silva Gomes, 34, que é filha de diarista e já trabalhou na profissão, até se tornar cuidadora de idosos.

Muitas domésticas almejam mais a mudança de status que a de renda. Colocam em um nível acima do trabalho doméstico o das babás e cuidadores. “É muito melhor do que lavar e passar, porque isso já faço em casa”, compara Maria Aparecida Lima, 44. Com a nova emenda constitucional, ela perdeu o emprego em que dava assistência a uma idosa, pelo qual Srecebia R$ 1,4 mil. Os patrões disseram que não poderiam bancar o aumento dos benefícios. Mesmo assim, Aparecida não quer voltar a ser doméstica. Tenta uma vaga no novo patamar que alcançou. “Adorei essa lei aí. Vai ficar uma coisa ótima”, diz ela, que, enquanto não consegue novo emprego, aproveita para fazer um tratamento dentário.

Outras domésticas se conformam. “A gente que não tem estudo, tem de enfrentar casa de família. Tive oportunidade, mas achava que estudo não tinha futuro. Só estudei até a quinta série. Hoje em dia, todo mundo exige do ensino médio para frente”, comenta a diarista Ana Rocha, 48, moradora de Valparaíso. Ela nunca cogitou o mesmo destino para a filha, que hoje é vendedora. Voltar para a escola é algo que poucas domésticas cogitam. “Quando vejo as pessoas passando na rua, dá vontade. Mas quando entro em uma sala de aula, não quero mais”, conta Maria Madalena de Souza, 37.

As informações são do Correio Braziliense

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