A guerra fria das moedas

Bruno De Conti- Valor Econômico

Em 2010, o ministro Guido Mantega declarou que o mundo vivia uma “guerra de moedas”. A declaração repercutiu e os encontros do G-20 desde então têm esse tema no centro do debate. Na reunião de Moscou, encerrada neste fim de semana, foi declarado o fim dessa guerra. Mas será que podemos crer nesse armistício? Quais os aspectos envolvidos nessa guerra?

As declarações associadas à guerra de moedas fazem referência aos conflitos internacionais relativos às taxas de câmbio. À época da declaração de Mantega, o já antigo litígio entre EUA e China começava a se espraiar e ele hoje envolve o euro, o iene, o franco suíço e mesmo algumas moedas periféricas. Contudo, as discussões cambiais não são o único dilema dessa guerra. Há três particularidades da moeda cuja compreensão é crucial para o estudo da economia capitalista e que fazem da guerra das moedas algo muito mais abrangente.

As armas brasileiras são a administração cambial e a manutenção de controles na conta financeira, mas que devem ser conjugados a um esforço permanente pela redução do uso do dólar no comércio e nas finanças internacionais – ao menos na América Latina

A primeira particularidade da moeda diz respeito à dupla face de seu valor: a interna, relativa aos preços domésticos; e a externa, relativa às demais moedas nacionais. Para os negócios internacionais, sua face externa é a mais importante e ela se refere à taxa de câmbio em relação às outras moedas. Vê-se, assim, que a questão mais comumente associada à guerra de moedas é efetivamente importante, dentre outras coisas, porque as taxas de câmbio são um elemento essencial para a competitividade externa de cada país. No período entre guerras, as desvalorizações cambiais competitivas foram frequentes, num esforço dos países para recuperar os níveis pretéritos de crescimento econômico. De modo análogo, a crise atual promove o acirramento da competição internacional, recolocando a administração cambial como um importante instrumento. Desvalorizações recorrentes e disseminadas contribuem para o aumento da volatilidade cambial, de modo que a guerra das moedas relaciona-se ao patamar e à volatilidade das taxas de câmbio.

A segunda particularidade da moeda diz respeito a seu grau de liquidez. A moeda é o ativo líquido por definição de uma economia nacional e para a detenção de outros ativos financeiros, os agentes exigem um prêmio para compensar sua iliquidez: a taxa de juros. Quando transacionadas em âmbito internacional, as distintas moedas (e os títulos nelas denominados) possuem também diferentes graus de liquidez, de forma que as taxas de juros que lhes são imputadas são também diferentes. A abertura financeira crescente determina que as taxas de juros dos distintos países sejam cada vez mais conectadas e, ademais, calculadas em relação ao ativo mais líquido da economia mundial. Assim, os países possuem diferentes taxas de juros para seus títulos e também diferentes graus de autonomia para a condução de sua política monetária. Se um país central muda sua taxa básica de juros (“quantitative easing”), pode forçar outros países a seguirem-no. Nota-se, então, que a guerra de moedas toca também a questão das taxas de juros e da política monetária de cada país.

A terceira particularidade da moeda refere-se ao fato de que ela é um instrumento central de poder. Mais ainda: moeda é poder. Por um lado, se o emissor de uma moeda é poderoso, terá condições de estimular o uso de sua moeda; por outro lado, quanto mais essa moeda é utilizada, maior é o poder do país emissor, numa espécie de círculo virtuoso (ou vicioso). As distintas formas que assumiu o Sistema Monetário Internacional ao longo da história são ilustrativas, tanto no que diz respeito às regras e instituições, quanto ao arranjo tácito das moedas à sombra desse sistema. Nos séculos XII e XIII, os Países Baixos tinham uma posição central no comércio mundial, de forma que o guilder holandês era a moeda mais importante do SMI. No século XIX e início do XX, o Reino Unido foi o centro econômico global e a libra esterlina tornou-se a principal moeda. Após as grandes guerras, os EUA consolidaram-se como a principal potência mundial e o dólar passou a ocupar a posição central do SMI, lugar que ainda ocupa. Esses processos de modificação do sistema são lentos e interessantes, já que refletem e reforçam (simultaneamente) as correlações de poder entre os países. Na outra extremidade do espectro está a maioria dos países, cujas moedas não são usadas em escala internacional. Vê-se, portanto, que a guerra das moedas diz respeito também ao uso internacional das moedas e à hierarquia do SMI.

Consequentemente, a guerra das moedas, em sua essência, não é apenas uma questão cambial, mas diz respeito: 1) às taxas de câmbio dessas moedas; 2) às taxas de juros dos títulos denominados nas distintas moedas e à autonomia das políticas monetárias nacionais; 3) ao uso internacional das moedas e à configuração hierárquica do SMI.

Percebe-se, então, que as desvalorizações cambiais e o afrouxamento monetário são batalhas de uma guerra mais abrangente e cuja solução exigiria uma ampla reforma do SMI. Enquanto isso não ocorre, a guerra continuará, de forma silenciosa. A despeito da retórica pacifista da reunião do G-20, cada país seguirá usando as armas que dispõe, numa espécie de “guerra fria das moedas”. As armas brasileiras continuam sendo a administração cambial – para evitar a sobreapreciação do real – e a manutenção de controles na conta financeira – que conferem mais autonomia à política monetária doméstica -, mas que devem ser conjugados a um esforço permanente pela redução do uso do dólar no comércio e nas finanças internacionais – ao menos na América Latina – e de transformação desse caráter hierárquico do SMI.

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