Dengue patrimonialista

Ricardo Mélez Rodríguez- Estadão

A posse de Renan Calheiros (PMDB-AL) co­mo presidente do Senado está a in­dicar a entropia das nossas instituições. E não apenas pelos paradoxais discur­sos pronunciados ao ensejo da posse pelo próprio Calheiros e por figuras que décadas atrás foram esconjuradas da cúpula do governo por práticas não re­publicanas, como o senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL).

O fato de Renan Calheiros se apresentar como paladino da  ética num momento em que está sendo questionado peío Ministério Público, em denúncia apresentada pela Procuradoria- Geral da República ao Supremo Tribunal Federal (STF) por prá­tica de atos contrários à dignida­de republicana, é, no mínimo, um acinte para os cidadãos que ainda acreditamos ser possível viver num País civilizado. De ou­tro lado, a posse na presidência da Câmara dos Deputados de Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), cuja proposta le­gislativa se centra na manuten­ção de práticas clientelistas que atrelam o Congresso Nacional ao Poder Executivo – como as emendas parlamentares -, com­pleta o quadro de desmoraliza­ção do Legislativo federal.

As coisas não seriam tão gra­ves se correspondessem apenas a uma crise ética e poíítica do Poder Legislativo. Acontece que a doença é mais radical. Os sintomas da decomposição in­serem-se no contexto de uma maré negra que aponta para a desmoralização total das insti­tuições republicanas, num fatí­dico balé que tem como regente o ex-presidente Luiz Inácio Lu­la da Silva.

Os próximos alvos, nessa em­preitada de morte cívica, serão a cabeça do Poder Judiciário e a do Ministério Público, na reto­mada do processo de desmorali­zação já iniciado pelo lulopetismo contra o presidente do Su­premo Tribunal e contra o pro­curador-geral da República.

Alvo já anunciado dos ata­ques da petralhada será tam­bém a imprensa, que passará a ser acusada pela instabilidade política, numa manobra leninista de acusação, pela militância, das culpas cometidas pelos pró­prios denunciantes. Afinal, quem mais tem trabalhado em prol da instabilidade das insti­tuições é o próprio lulopetismo, que tem buscado de forma incessante pôr a República, ex­clusivamente, a serviço de Lula da Silva e dos seus interesses partidários.

Em paralela, eficaz e deleté­ria ação, o crime organizado vai cumprindo o seu papel de ame­drontar os cidadãos, mediante uma prática que, no século pas­sado, Pablo Escobar pôs em fun­cionamento na decomposição colombiana: o assassinato siste­mático de policiais e a realiza­ção rigorosamente programada de atos de terrorismo que têm como finalidade fragilizar ain­da mais a psique coletiva, como está ocorrendo, de vários me­ses para cá, em São Paulo e no interior de Estados outrora pa­cíficos, como Santa Catarina. Afinal, se o clima imperante na alta cúpula do governo federal é o de pôr o Brasil a serviço de  interesses particulares, o crime  organizado aproveita a brecha e  pratica a sua própria demolição das instituições.

O lulopetismo age, no tecido social, como aqueles aracní­deos peçonhentos que inoculam nas suas vítimas o fatal ve­neno que, aos poucos, lhes para­lisa os membros, reduzindo-as à inação e à morte. Na caminha­da de séculos do patrimonialismo brasileiro, nessa dança ma­cabra de privatização de tudo para obedecer às instâncias familísticas de um clientelismo rastaquera, o lulopetismo não tem paralelo nos itens de cinis­mo e eficácia. O homem do cha­péu está conseguindo cooptar todo mundo, criando um con­senso fatídico ao redor da des­moralização das instituições re­publicanas. É o capítulo que an­tecede a morte cívica e o impé­rio de um desolador peronismo à brasileira, como já previu o ex-presidente Fernando Henri­que Cardoso. “Nunca antes na história deste país” se tinha apresentado alguém, como Lu­la, dotado de tão grande caris­ma, arguto e excelente articulador, pondo tudo a serviço de uma era de domínio unipessoal e da companheirada.

Não cometamos a injustiça de comparar esse quadro do avanço patrimonialista com o do getulismo ou com o do regi­me de 1964. Nesses dois mo­mentos da nossa História, er­gueu-se proposta de moderni­zação autoritária, para esconjurar forças dissolventes arregi­mentadas pelo totalitarismo de plantão e para dotar o País das instituições sociais e da in- fraestrutura que lhe garanti­riam entrar no mundo da indus­trialização.

Nunca concordei com esse viés autoritário. Teria sido pos­sível, sim, modernizar o Brasil preservando os institutos do governo representativo e do respeito aos direitos indivi­duais. Teríamos dado um passo bem à frente do tradicional patrimonialismo modernizador na América Latina. Mas não há dúvida quanto ao fato de que tanto no getulismo quanto no regime militar o País se modernizou.

Ora, isso não se verificou na década lulopetista. Tudo aqui­lo que parecia programado pa­ra efetivamente democratizar e modernizar de vez a nossa vi­da política terminou desaguando no mais deslavado clientelis­mo, num projeto de cooptação amplo, geral e irrestrito da so­ciedade pelo Poder Executivo hipertrofiado. Tudo ocorreu sem a mínima racionalidade pa­ra com a política econômica e sem o cuidado necessário para com a manutenção sadia das nossas contas públicas, inicia­do com o Plano Real.

Dadas as repetidas investidas do desgoverno de Dilma Rousseff e do lulismo em ação contra a transparência e contra a sadia gestão da economia, podería­mos terminar este quadro som­brio com mais uma imagem to­mada de empréstimo à entomologia. O Brasil é, hoje, vítima da terceira epidemia da dengue pa­trimonialista, que se seguiu às duas outras sofridas durante os governos de Lula.

Conseguirá o corpo social da Nação aguentar toda essa carga negativa?

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