Contra o impasse, basta dignidade

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr.- Correio Braziliense

No apagar das velas do mensalão, o Supremo Tribunal Federal, por maioria apertada, entendeu possível a imediata cassação judicial de parlamentar condenado por decisão criminal transitada em julgado. A ordem está dada e ordem judicial não é conselho nem pedido: é ordem e, assim, deve ser cumprida. Apesar do mandamento jurisdicional, a questão não está superada. Isso porque os quatro votos em sentido contrário autorizam a interposição de embargos infringentes, que provavelmente virão, reinaugurando o debate sobre essa intrincada matéria constitucional. De minha parte, antes da subjetiva avaliação do julgado, me convém lembrar elucidativo e invulgar fato histórico.

Dando continuidade aos descaminhos ditatoriais do movimento de 1964, foi requerida autorização à Câmara para o processamento do deputado Márcio Moreira Alves por palavras proferidas na tribuna parlamentar. Apesar da clareza da lei quanto à imunidade material dos deputados e senadores por quaisquer opiniões, palavras e votos externados no fidedigno exercício de suas funções parlamentares, levantaram-se vozes a questionar a higidez normativa e a consequente autoridade da Câmara para conceder ou não a licença de impulso processual contra um de seus membros.

Foi que, na sessão de 11 de dezembro de 1968, a nação foi brindada com discurso magistral de um dos seus maiores oradores. Retornando de conferência jurídica no Recife, o então deputado Paulo Brossard discorreu brilhantemente sobre as prerrogativas parlamentares, vindo a assentar, com o exímio e a acuidade habituais, que “à Câmara não cabe exonerar-se das suas responsabilidades na defesa das prerrogativas que são suas. O dever é seu e ela não pode transferi-lo a outro Poder. Não pode dar de ombros e confiar que o Supremo Tribunal vá defender prerrogativas que são suas, não dele”. Segundo o registro da imprensa da época, a Câmara ouviu em silêncio e aplaudiu de pé para, no dia seguinte, negar o sobredito pedido de instauração processual. A partir daí, quem conhece a história bem sabe os seus incolores desdobramentos.

Mas, o que importa, aqui, para o caso do mensalão, é que existem prerrogativas que são do parlamento e que só, e somente só, o parlamento sobre elas pode dispor. Daí, a razão de ser da regra do art. 55, §2º da Constituição Federal que, sem rodeios, estabeleceu — para a hipótese de condenação criminal transitada em julgado — que “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta”. E assim o é, porque o político corrupto não traduz um problema meramente individual, mas uma agressão à própria dignidade da respectiva Casa legislativa. Logo, estamos diante de uma responsabilidade institucional conjugada de ambos os Poderes: o Judiciário deve aplicar a lei e condenar os acusados, enquanto o parlamento, no fidedigno exercício da política democrática, tem o dever de cassar o mandato do político corrupto.

Ocorre que o parlamento brasileiro, por insistentes e graves fatos nada lisonjeiros, anda institucionalmente desacreditado. Vivemos um perigoso e preocupante tempo de apequenamento moral do Congresso.
Aliás, o próprio mensalão foi uma tentativa deliberada de subjugar o parlamento aos projetos imperiais do partido oficial. Em vez de um golpe de força, foi engendrado sofisticado mecanismo de compra de consciências políticas venais. E, quando se pensa que a degeneração dos costumes chegou ao chão, vem um herói e me apresenta um relatório de importantíssima CPI com apenas “página e meia”… Ora, é demais!

Ou o parlamento muda ou será mudado pelas circunstâncias. Aliás, por que o ilustre presidente da Câmara, em vez de procurar os microfones da crise ou do impasse, não convoca, de imediato, uma sessão extraordinária (art. 57, §6º, II, da Constituição) para a imediata cassação dos deputados mensaleiros? Assim fazendo, o Legislativo demonstrará o seu compromisso democrático perante a nação e, ainda, que está acima de eventuais divergências hermenêuticas quanto ao teor normativo da Carta Constitucional. Enfim, saídas políticas existem; basta querer e ter espírito público para fazê-las. A questão derradeira é uma só: ainda há dignidade parlamentar para se acreditar e elevar ou a desonra é tanta que apenas sugere os holofotes de um impasse que apequena as instituições do Brasil?

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