Coaracy Fonseca: O preço do Estado Social, os rentistas e os jovens pós-modernos

Coaracy Fonseca é promotor de Justiça e ex-procurador Geral de Justiça de Alagoas 

Em entrevista recente, o Ministro Lewandowski, experiente magistrado aposentado do STF, declarou que o “X (antigo Twitter)’supostamente’ está a serviço de grupos de extrema direita para interferir na política”.

Uma importante declaração de uma autoridade de grande envergadura moral. Ele falou em português, a língua pátria, sem subserviência e tampouco postura de animal rastejante.

A fala do hoje ministro da Justiça e Segurança Pública casa como uma luva à crônica ora lançada ao público.

Viver num Estado que oferece serviços essenciais de graça tem um custo relevante. Os seguidores da extrema-direita não querem pagar o preço, têm plano de saúde, preferem investir no mercado de capitais.

São os rentistas. Não geram empregos e são contrários à distribuição de renda. O individualismo deve prevalecer sobre a solidariedade, que é invenção de comunista.

Antes da Constituição de 1988 não existia o SUS, que tem como princípios a gratuidade e a universalidade dos serviços de saúde pública.

Vale dizer: tanto o rico quanto o pobre podem ser usuários dos seus serviços, sem pagar um tostão, que vão da assistência básica ao tratamento mais complexo.

O SUS é mantido através de impostos e contribuições sociais pagos por toda a sociedade, protege o cidadão do berço ao túmulo.

Deixo de abordar a assistência social, a Loas, que concede benefícios de um salário mínimo aos deficientes e idosos, não contribuintes do RGPS.

Durante o regime militar, idolatrado por alguns idosos e por pessoas que sentem saudade do que não viveram, o INAMPS, atual SUS, só oferecia a assistência básica.

Os únicos beneficiários eram os trabalhadores com emprego formal, com carteira assinada.

A grande maioria da população brasileira, sem emprego formal, era alijada do sistema, vivia da caridade ou da assistência das santas casas, quando era acometida por doenças, que eram diversas e numerosas, por total ausência de saneamento básico.

Os remédios não eram fornecidos a custo zero. As farmácias eram o destino para quem tivesse dinheiro para pagar. A morte era a segunda opção.

Você, leitor, deseja acabar mesmo com o SUS?

Hoje os ricos só recorrem ao SUS para a aquisição de medicamentos de alto custo, fornecidos através de ações judiciais, situação que gestou um sistema de fraudes e danos ao Erário, blindado pelas decisões judiciais.

Nos países do primeiro mundo a judicialização da saúde é inadmissível, cito Portugal como exemplo, pois conheço profundamente o SNS, seja como usuário, seja como estudante.

Em certa ocasião, em Alagoas, foram comprados remédios, misteriosamente, muito além do necessário. Os fármacos foram acomodados num velho depósito, depois foram incendiados, dentro do período de validade.

Ninguém respondeu por isso. A história esqueceu, os jornais emudeceram e o povo não se preocupa com essas coisas. O dever de indenizar os danos causados é imprescritível. É um caso que continua aberto.

Causa-me estranhamento ver pessoas da classe média, sem condições de pagar um plano de saúde, que recorrem ao SUS, apesar de partidários da extrema direita. A conduta não condiz com a visão política.

O Sistema Único de Saúde foi uma conquista do movimento sanitarista, grupo composto por médicos com visão social, que hoje seriam tachados de comunistas.

Na ditadura, o valor da aposentadoria paga pelo INPS era de 80% do salário pago na atividade. A pensão da viúva era correspondente a 50% do benefício acima citado, sem garantia de reajuste real.

Você, leitor, deseja acabar mesmo com o Estado Social?

Os jovens, infelizmente, não conhecem a história. Por isso a extrema-direita, de que fala o ministro Lewandowski, desestimula a leitura e a procura da verdade científica.

Os debates e discussões filosóficas sobre a verdade, mesmo no campo da ciência, não cabem nos limites de uma crônica.

Os jovens de hoje vivem logados nas redes sociais, fala-se até numa tal deep web, internet profunda, onde tudo acontece.

Os jovens são presas fáceis para os populistas e tiranos que, a pretexto de gerar uma comunicação direta, sem intermediários, criam bolhas de mentiras, que favorecem um grande número de acessos. Na oportunidade, são realizadas a doutrinação e o aliciamento de inocentes, sem qualquer base filosófica ou comprovação.

São incutidas as denominadas Fake News e alimentado o desrespeito aos poderes e instituições. Os inocentes acreditam em tudo, até que o sol gira em torno Terra, que é plana, nada contestam.

E com base nessas crenças vão às urnas.

A extrema-direita não aguça a racionalidade, trabalha com os afetos, o componente emocional.

O STF tem combatido essa prática nefasta.

Deixo de falar na compra de votos, matéria de atribuição da Polícia Federal, que tem um sistema de inteligência robusto.

Mas não sei por qual motivo não oferece resultados relevantes nessa área. Tal fato me causa perplexidade. Há algum limite inultrapassável? Mas continuo a acreditar na polícia judiciária eleitoral.

Noutro giro, os extremistas falam muito em liberdade, que eles mesmos desrespeitam, pois não admitem críticas.

Quando comandam instituições são campeões de assédios moral e sexual, além da abertura de procedimentos disciplinares graciosos e da forja de ações penais contra os adversários para que mantenham o silêncio.

Vive na base do medo e do terror generalizado.

Outro dia, assisti a uma parlamentar travar um projeto em benefício dos portadores de fibromialgia, uma doença que causa muito dor. Mas para a deputada o Estado não deve se preocupar com isso.

Liberdade, liberdade, liberdade gritam os falsos profetas. Mas, falam ainda mais alto quando se trata das obscuras emendas do relator.

Muito dinheiro foi repassado sem transparência e prestação de contas. Quem inventou as emendas secretas?

Uma verdadeira aberração jurídica, de causar arrepios aos especialistas em direito financeiro, sou leitor assíduo dessa matéria tão complexa. Considero-me um escolar, sem constrangimento.

Ao meu sentir, após 30 anos de profissão, o grande problema das eleições vem antes, muito antes, das urnas eletrônicas.

O ministro Flávio Dino, do STF, em decisão recente, travou as emendas pix, exigiu maior transparência e rastreabilidade dos recursos públicos.

Você deseja mesmo, leitor, acabar com o Estado Social, no qual as instituições de controle do dinheiro público realmente funcionem sem entraves?

Realizar festas com altos cachês pagos aos artistas não é conquista social, não muda a sua vida. É pão e circo, receita antiga para manter o poder e a passividade do povo.

Acabou a festa e a sua realidade em nada mudou. Ah, os caixas do supermercado estão sendo substituídos por máquinas.

Os cobradores de ônibus foram substituídos por catracas eletrônicas. Os porteiros dos condomínios agora são máquinas de botão.

As usinas ameaçam mecanizar o corte da cana, fato que vem ocorrendo em várias regiões do País, com a consequente demissão dos escravos modernos.

Os indivíduos são recrutados ainda jovens, perdem o tempo fugaz e mágico da infância e depois são jogados à própria sorte. É o comum ciclo da cana de açúcar.

A maioria é analfabeta total ou funcional (são aqueles que leem, mas não sabem interpretar um texto) sem possibilidade de inserção no novo mercado de trabalho, tudo em troca de benefícios fiscais ou creditícios do Estado.

Se demitidos, só os programas de inserção social podem salvá-los do flagelo da fome.

Quanto a criação de novas indústrias, não existe mais interesse. Os detentores do poder econômico preferem investir na bolsa de valores, em ações de grandes empresas multinacionais e produtos bancários.

Por tal motivo, impõem que os juros aumentem ainda mais, senão o dinheiro é transferido, migra para os paraísos fiscais. O dinheiro não tem pátria, é um nômade.

A extrema-direita, para satisfazer seus interesses, concedeu independência ao Banco Central, um absurdo para um País como o Brasil, sequer nos EUA isto existe.

O Banco Central dita os juros do mercado financeiro.

As nossas florestas e os animais silvestres e domésticos estão sendo queimados por bandidos. Mais de 40 mil hectares já foram destruídos. A natureza dará a sua resposta silenciosa e devastadora. Um humanista não faria isso, é uma certeza.

E você, leitor, ainda deseja acabar com o Estado Social?

Sei que essa crônica não muda a cabeça de ninguém, os leitores são sujeitos pensantes, mas representa o meu pingo de água sobre um mundo sombrio e cada vez mais cruel, que está sendo gestado por gente sem alma. Gente que mata gente.

Como disse Hélio Bicudo: “não se confia em assassinos”.

Referia-se ao esquadrão da morte liderado pelo delegado Fleury, muito querido pela sociedade paulista, que só foi enfrentado por um Promotor de Justiça, boicotado pela própria instituição. Contudo, venceu o anjo da morte!

Há jovens sem preocupação com o futuro e sem pensamento social, que desejam apenas existir e curtir as festas. A extrema-direita aprendeu a lidar com eles.

Finalmente, o ministro da Justiça e Segurança Pública, por sua vez, entendeu a função do X, que deve voltar ao Brasil antes das eleições.

Por derradeiro, gostaria muito de falar diretamente aos pobres. Gostaria muito de dizer tanta coisa, que não cabe em texto breve.

A desonestidade e a tolerância com os agentes da corrupção estão destruindo a democracia, estão acabando o lindo país chamado Brasil.

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