O Caso Mayke/ Scarpa e o mito dos coachs

Flávio José Domingos

No dia 10 de março de 2023 foi noticiado pela imprensa (inicialmente esportiva) que um jogador e um ex-jogador do Palmeiras (respectivamente o lateral-direito Mayke e o meio campista Gustavo Scarpa) sofreram perdas milionárias em investimentos em criptomoedas indicados pelo ex companheiro de time, o atacante Willian (que também relata ter sofrido prejuízo em operação financeira similar).

A cobertura jornalística, que alcançou seu ápice com uma reportagem de cerca de quinze minutos no Fantástico (exibida no dia 12/03/2023) caminha para uma leitura moral, ou seja, se Willian se valeu de uma relação de companheirismo para se associar a um esquema de fraude ou, ainda se o jogador, mesmo não se associando a esse esquema, viu nessa relação de amizade uma oportunidade de ganhar dinheiro com comissão pela indicação.

É importante destacar que a leitura moralista é uma constante em coberturas sobre crises financeiras, como no caso da crise de 2008 em que se focou na fraude de informações, nas relações espúrias entre bancos e consultorias ou na ganância dos “operadores de mercado”, como se fosse uma questão meramente maniqueísta, ou seja, qualquer problema financeiro está associado à maldade desses atores.

Uma abordagem jurídica/criminalística de apuração de responsabilidade também está em curso, vide os boletins de ocorrência registrados por Mayke e Scarpa.

Eis que surge também nessa trama a empresa operadora das operações financeiras que fatalmente parece não ter regularidade jurídica e mesmo técnica para realização de tais procedimentos, sendo assim, mais que cabível, necessário que se apure as responsabilidades cíveis e criminais.

Sem prejuízos às duas abordagens citadas anteriormente, gostaria de olhar a questão por um outro prisma: a complexidade e a volatilidade do sistema financeiro e o mercado de coachs e educadores financeiros.

Quem opera verdadeiramente em mercados financeiros afirma que se trata de um jogo entre risco e rendimento, em que ambos são diretamente proporcionais, ou seja, quanto maior o risco, maior o rendimento.

Há um debate em termos de teoria econômica que vou tentar expor em um argumento simples: na verdade o mercado financeiro (e o sistema econômico de uma forma geral) é um jogo de incerteza e expectativas de rendimento.

Risco e incerteza, em economia estão longe de ser sinônimos.

Em economia e finanças um evento arriscado é aquele em que se conhece as probabilidades de ocorrência de algum sinistro e, assim e possível dar um preço exato para tal atividade, como no caso das companhias de seguros que sabem, com base em dados sobre acidentes e furtos as probabilidades dessas ocorrências e formam os preços de seguros de automóveis.

O evento incerto é aquele em que não se conhecem as probabilidades de ocorrência.

Essa é a questão central, na minha leitura.

Investimentos financeiros são incertos, pois dependem de uma infinidade de variáveis que tornam esse sistema, mesmo com regularidades, passível de ocorrências imprevisíveis.

Ademais, é impossível garantir uma taxa de retorno exata, mesmo nas transações mais seguras como renda fixa, por exemplo (seria demais lembrar o sequestro das poupanças no governo Collor?), cabendo ao sistema financeiro e às demais atividades econômicas trabalharem com expectativas de retorno que são mais incertas quanto mais complexo for o tipo de investimento.

Em resumo, o sistema financeiro é inerentemente incerto (embora os operadores de mercado e parte relevante – hegemônica – da Teoria Econômica não reconheçam esse traço do mercado, preferindo acreditar que os modelos econômicos conseguem preditar com exatidão estatística as trajetórias de mercado dos ativos) e complexo, ainda mais com a infinidade de ativos de papel que surgem todos os dias (criptoativos, derivativos securitizados) que, em comum, não possuem nenhum lastro com bens reais (dinheiro, imóveis, dentre outros).

O caso das criptomoedas é ainda mais grave, pois, é a ilusão da moeda sem Estado.

Todo estudante de Economia aprende que um dos atributos da moeda é ser crível, servir como unidade de conta capaz de regular a economia, ou seja, ela precisa ser aceita socialmente e como tal, não sofrer grandes abalos.

Uma moeda sem Estado significa uma moeda sem regulação e aqui está implícita a ideia de que o Estado é prejudicial ao ganho privado. Dentro do mundo absolutamente complexificado das finanças, o ganho especulativo e o discurso liberal chegam ao ápice com esse tipo de ideia.

A questão da regulação é um debate que volta ao centro do debate com a recente decretação de falência do Silicon Valle Bank nos Estados Unidos, justamente porque o mercado bancário dawuele país sofreu um novo movimento de desregulamentação em 2019, depois de ter ocorrido ações de regulamentação no pós-crise de 2008.

Sendo assim, mesmo que, em tese, não estivéssemos falando de uma patente fraude, Mayke, Scarpa e qualquer outra pessoa que coloque seus rendimentos nessa roda está sujeita a perdas repentinas de patrimônio.

Nesse cenário, mais uma vez aparece uma figura que vende a facilidade de transformar o ambiente complexo das finanças (as pessoais e o sistema financeiro) em um ambiente fácil, monetizando com cursos e palestras.

Essas figuras são muito importantes para a ampliação do mundo das finanças ao introduzirem as rendas dos trabalhadores (seja os que ganham um salário na casa dos milhares de reais, o profissional de classe média, ou até mesmo o trabalhador que ganha 2, 3 salários-mínimos) no mercado financeiro.

Estes atuam em um processo de convencimento e, mais do que isso, de captura de rendas para amplificar o mercado financeiro, já que este é um mercado em que uma maior quantidade de recursos em circulação garante aos grandes operadores (bancos, corretoras) maior capacidade de atuação e, portanto, de ganhos.

O coach vende uma “verdade mentirosa”, em um ambiente, amplificado pelas Tecnologias de Informação e Comunicação em que tudo se torna “a minha verdade” (seja um coach financeiro ou a “turma do nefasto Red Pill”… cada um a seu tipo são amplamente desfavoráveis ao tecido social).

A título de conclusão, vive-se um processo em que as finanças determinam trajetórias (de empresas, pessoas, governos, políticas, e até mesmo da vida cotidiana).

Se nos anos 1980, 1990 e 2000 verificou-se a complexificação de ativos, mercados e agentes financeiros (como os fundos de pensão, por exemplo) que realizavam grandes movimentos de direcionamento das riquezas reais para o mercado financeiro, os coachs e educadores financeiros parecem configurar-se como micromovimentos dessa captura.

O grande problema é que essas pessoas, fazendo um discurso motivacional, não sabem o que falam, transformam o complexo e incerto no mar de tranquilidades, e ainda ganham dinheiro das plataformas digitais e dos agentes financeiros para tomar as rendas das pessoas. O mercado financeiro é inerentemente volátil, não é uma mina de ouro e quem disser o contrário é mentiroso (e talvez bandido).

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