Eles trocaram a vida por uma pedra de crack

crack

Alexandre Câmara

Cenários desoladores e perigosos são os ambientes em que se situam as bocas de vendas de crack na periferia; lugares lúgubres ou inóspitos frequentados, em segredo, pelos usuários que se arriscam para comprar a droga, e em ser presos pela polícia ou ter sua imagem exposta nos jornais sensacionalistas da TV aberta. Usuários que chegam a pé ou de bicicleta e muitos, muitos da classe média, que se arriscam de carro ou de moto, a qualquer hora do dia ou da madrugada, para comprar o crack, a droga avassaladora da ética, da moral, da autoestima e da saúde, de parte da juventude alagoana e brasileira.

No mercado da Levada, por exemplo, em alguns dos corredores sombrios das barracas de madeiras, situadas nas proximidades do Palácio do Trabalhador, há focos de jovens e menores fumando crack, em plena luz do dia. Jovens menores. Meninos e meninas. Claro, fica-se com medo de ser roubado por eles, umas crianças. A cena já é tão comum que os donos das barracas nem reparam mais.

As bocas de drogas existem em bairros como Vergel e Ponta Grossa. No entorno das bocas ficam algumas meninas, às vezes grávidas e drogadas, e garotos que trabalham tanto como olheiros do crime, como para vender ou para informar ao usuário onde se compra. “Ficam por ali, na esquina, próximo à boca”, informa um ex-usuário, com grau universitário, que não quer se identificar, como é o dia a dia da venda de drogas no bairro de periferia, e que eu vou chamar aqui de Roberto Silva*

A adrenalina do ritual

De acordo com Roberto, a compra sempre tem todo um ritual que promove ao ato um teor de adrenalina potencializado. “O nervoso começa desde a hora em que a gente consegue o dinheiro para comprar até o momento de dar o primeiro “tapa” (tragada). É uma adrenalina danada ir até à boca. Quando a gente sai, muitas vezes é num bairro grande, a gente vai pedindo a Deus para não ser parado pela polícia, para não ir preso. Quando a gente compra coloca as pedras (de crack) na boca, para não ser pego, se for revistado. Passa rapidamente em algum lugar para comprar cigarro e uma latinha de refrigerante ou cerveja e correr pra casa! Quando chega lá o nervosismo é tão grande que é preciso ir no banheiro evacuar antes; isso quando dá tempo. Depois, ainda tem que furar a lata, fazer cinza para colocar nos furos, meter a pedra ali, acertar o fogo do isqueiro e dar a primeira baforada. É uma sensação indescritível”, explica.

Roberto, que precisou se internar para deixar de usar, lembra que sua vida se transformou num inferno e diz ter caído em desgraça. “Vendia tudo que eu pegava a preço de banana: minhas roupas, celular de amigos, que eu roubava, virei o rei da mentira para conseguir dinheiro… Pegava dinheiro da carteira do meu pai, da bolsa da minha mãe… Fiquei esquelético, com olheiras, a mente perturbada, andava sujo e fedorento. Parecia um morto vivo. Foi então que pedi pra ser interno. Sabia que ia terminar morrendo”, relembra.

Drama em família

Um casal se viciou junto no crack e só conseguiu largar o vício após o internamento involuntário dos dois. Vamos Chamá-los de Carlos e Rachel. Hoje lembram com tristeza tudo que passaram.

“Nós saíamos juntos para comprar. Quando acabava nosso dinheiro, a gente saía vendendo as coisas dentro de casa. Vendemos televisões, diversos celulares, tudo que tinha valor para uma boca de droga. Vendemos até o som e peças do carro”, disse Rachel. Carlos, seu marido conta emocionado que nos momentos mais críticos do vício, quando eles não tinham mais dinheiro, estavam devendo a boqueiros, que não conseguiam mais comprar fiado, nem tinham mais o que vender, ele deixava a mulher transar com o dono da boca em troca de droga. “Eu mesmo já ofereci meu corpo em troca de drogas. Chegamos no fundo do poço. Se não fossem nossas famílias se juntarem para internar a gente, e pagar os débitos, acho que a essa altura a gente já estava morto”, afirmou o Carlos.

Na cama com o inimigo

Fernando Gomes (38), é empresário, foi usuário de crack por seis anos, e há dois anos está “limpo”. Invariavelmente ele fazia suas “farras”, em casa, com amigos selecionados, e outros nem tanto assim. Nessas sessões de drogas que podem durar do início da noite até o sol raiar, Fernando, que é gay, afirma que transou com vários jovens héteros. “Algumas vezes eles vinham aqui em casa para transar só porque depois queriam dinheiro para comprar droga. Em outras, depois que usavam muito, queriam transar, porque parece que quanto mais você usa mais você fica à vontade para satisfazer seus instintos. A gente perde o medo de ser amoral”, afirma. Mas existiram outros, os que seduziram Fernando para roubar.

“Nem só de drogado bonzinho que troca sexo por droga vive o mundo do crime. Há os malandros, os espertos, que cometem crimes maiores. Certo dia eu conheci um loiro muito bonito, parecia um ator da Globo. Apesar dele morar na favela, não resisti. Já tinha bebido. A gente ficou fumando e eu dormi. Quando acordei ele tinha levado diversos equipamentos eletrônicos da minha casa”, afirmou.

Não tem dinheiro que chegue

A vida dupla levada pelo usuário de crack da classe média pode ser mantida por anos a fio sem que ninguém desconfie, exceto por amigos próximos ou alguém da família que não aceite e saia contando por aí. “Quando eu recebia, ia até a boca, comprava 30 reais, três pedras de dez, e ia correndo para casa usar. Você sempre acha que vai ser suficiente, que não vai querer mais. Mas depois que acaba, você fica querendo mais. Quando você vê, comprou entre 100 e 200 reais de droga no final de semana”, avaliou Fernando.

Quanto mais dinheiro, mais farra. “Eu tinha um namorado que toda vez que eu recebia a gente ia na boca e comprava droga. Final de semana então, era uma loucura. Às vezes a gente gastava 250 reais só com droga. ISSO fora a bebida. Quando ele recebia, era a mesma coisa. Imagina o quanto de droga a gente não consumia…”, afirmou Fernando.

O vício e a ressaca moral

As segundas feiras são dias terríveis para os drogados. Acordam liso, às vezes sem o dinheiro do pão, do ônibus, das compras básicas da casa, como um botijão de água. O assalariado Silvio Souza, que já foi demitido de dois empregos, por falta, ainda é usuário. “Quantos celulares meus já não foram pelo ralo? Na madrugada, quando o dinheiro acaba a primeira coisa que você vende

é o celular, porque é o produto de maior aceitação nas bocas de crack. Fora som, caixas de som, micro-ondas, aparelho DVD, o que você tiver em casa, vai vendendo…” Ele afirma que todo mês, repõe alguma coisa que precisou vender. “Rapaz, com essa droga a vida para de andar para frente, anda para trás. Parece que tem sempre uma nuvem negra na sua cabeça. O crack é a droga do azar”.

Final feliz

Roberto, desde que foi interno, nunca mais usou. Fernando, continua sem usar. O casal Carlos e Rachel, depois de passarem um ano em clínicas de recuperação, já estão há dois anos sem usar droga, e empregados. A casa deles, que antes vivia de pernas pro ar, hoje se encontra com móveis novos, televisões LEDs, e estão experimentando novas vidas. “A fase da desgraça já passou. Sem usar drogas eu consegui recuperar os equipamentos domésticos, comprar móveis para minha casa e me mantenho no emprego há mais de seis meses”, afirmou Rachel. Silvio Souza ainda se droga, ele quer parar, mas sabe, não é fácil. “Eu vou conseguir. Basta querer. Essa droga não vai me vencer. Eu vou vencê-la”

*Os nomes dos entrevistados desta matéria são fictícios, mas são personagens reais.

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